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Foucault, o arqueólogo.

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Michel Foucault

Em 1961 era lançado na França História da Loucura, que trouxe no seu bojo uma vasta gama de inovações teórico-metodológicas, no desenvolvimento de sua pesquisa Michel Foucault se dispôs a estudar de que maneira, em diferentes épocas e sem se limitar as fronteiras que delimitam as disciplinas, como o saber sobre o louco teve diferentes configurações e de que modo em determinado momento passou a constituir um novo saber, a psiquiatria, que nada mais é do que “a radicalização de um processo de dominação do louco” (MACHADO, 2014, p. 8). Mas que inovações são estas, que são demarcadas a partir de 1961? Eis uma Arqueologia.

De acordo com Judith Revel (2005), o método arqueológico caracterizou o método de pesquisa de Foucault até o final dos anos setenta. (Cf. REVEL, 2005, p. 16). Antes é necessário responder, o que é arqueologia? Basicamente, pode se dizer que a arqueologia estuda os vestígios deixados pelos homens, visando descobrir um passado desconhecido.

Dito isto, como vem a ser o trabalho do arqueólogo? A arqueologia trabalha com prospecção, escavação. Através dos vestígios recolhidos o arqueólogo busca aprender mais sobre o passado humano. O trabalho do arqueólogo se inicia em uma investigação bibliográfica, logo depois o processo de prospecção, que faz parte do processo de levantamento e consiste no trabalho metodológico para preservar o local de estudo, durante o levantamento é crucial observar as mudanças que começam a surgir no solo, a mudança de coloração que destacam as camadas estratigráficas; cabe salientar a relação transdisciplinar da arqueologia, ela encontra-se sempre relacionada a outras disciplinas tomando-lhe empréstimo de métodos que lhe darão suporte ao longo da pesquisa. Através dos objetos encontrados e da pesquisa feita, os arqueólogos entendem que servem para compreender as formas de pensamento, o conjunto de valores, e porque não, a própria sociedade que investigam.

Eis o que Foucault propõe ao utilizar-se do método arqueológico na sua pesquisa. Ao implacar uma arqueologia Foucault buscou:

Ao invés de estudar a história das ideias em sua evolução, ele se concentra sobre recortes históricos precisos […] descrever não somente a maneira pela qual os diferentes saberes locais se determinam a partir da constituição de novos objetos que emergiram num certo momento, as como eles se relacionam entre si e desenham de maneira horizontal uma configuração epistêmica coerente. (REVEL, 2005, p. 16).

Foucault passa então a desconstruir a ideia de uma história linear, que segue uma evolução a partir de uma origem e é continua partindo do menos para o mais avançado ou melhor, cada época é analisada dentro de suas especificidades. Um saber não é superior a outro, pois cada saber é “considerado como possuindo positividade específica, a positividade do que foi efetivamente dito e deve ser aceito como tal, e não julgado com base em um saber posterior e superior” (MACHADO, 2014, p. 7).

Cada época histórica produziu seus discursos e saberes próprios, que assinalam a sua marca temporal, o seu pertencimento a dada época e espacialidade. Tais marcas produzidas constituem os arquivos de uma época (ou como denomina o próprio Foucault, de uma episteme). Os arquivos são os traços dos discursos produzidos em dada época, que podem permitir em certa medida e dada as devidas condições a reconstituição dos saberes, conjuntos de regras e discursos produzidos historicamente. Os arquivos são camadas estratigráficas, sobre as quais Foucault irá fazer um levantamento da massa documental relacionada a estas épocas; escavando e analisando o corpus destes documentos que se tornam monumentos, constituindo-se em camadas, estratos, em que se busca reconhecer “em profundidade o que tinham sido, uma massa de elementos que devem ser isolados, agrupados, tornados pertinentes, inter-relacionados, organizados em conjuntos.” (FOUCAULT, 2008, p. 8).

O propósito da arqueologia é estabelecer o modo como os saberes emergiam e as transformações que sofriam, explicando as semelhanças e diferenças entre estes saberes e analisando as condições que permitem tal emergência, ressaltando que “não se trata de considera-lo como efeito ou resultante” (MACHADO, 2014, p.12), mas destacar o jogo estratégico, o embate de forças das quais ele é peça fundamental.

Os saberes estão ligados à um processo de racionalização, em que por meio do discurso da Razão se inicia a distinção entre científico e não-científico, positivo e negativo, normal e anormal. Os saberes constituem uma ordenação do mundo (e de indivíduos), baseados numa relação poder-saber. Baseado no discurso da racionalidade os saberes sobre o louco sofre alterações e reconfigurações, durante a Idade Média “Os loucos tinham então uma existência facilmente errante. As cidades escorraçavam-nos de seus muros; deixava-se que corressem pelos campos distantes, quando não eram confiados a grupos de mercadores e peregrinos. “ (FOUCAULT, 1972, p. 13), neste contexto o louco deveria viver em liberdade. Na Idade Clássica a situação do louco era bem diferente, ele era visto como uma desrazão, a irracionalidade dentro da racionalidade, deveriam ser então, adequados a norma.

Foucault destaca que:

A décima parte aproximadamente das prisões feitas em Paris, com destino ao Hospital Geral, diz respeito a ‘insanos’, homens ‘em demência’, pessoas ‘de espírito alienado’, ‘pessoas que se tornaram inteiramente loucas’. Entre estas e as outras, nenhum signo de diferença. (FOUCAULT, 1972, p. 125).

Em resumo, foi a época o grande internamento, aqueles que fugiam moralmente à norma fora exclusos da sociedade, ladrões, loucos, devassos, todos deveriam ficar reclusos dentro dos hospitais gerais. Na modernidade o discurso de exclusão se radicaliza, ao invés de libertá-lo ao se descobrir através da psiquiatria que a loucura é uma “doença da mente”, o discurso médico aprisiona o louco no hospício, uma instituição específica de internamento.

O método arqueológico desenvolvido ao longo da pesquisa de Michel Foucault trouxe uma ampliação de abordagens e métodos, prezando pela transdisciplinaridade, o constante diálogo com outros inúmeros campos de saber, em A Arqueologia do Saber (1969) Foucault destaca que a História agora se volta para a Arqueologia (antes era o contrário) para “restabelecer” o sentido histórico dos discursos. A análise arqueológica, permite dentre outras coisas, “a multiplicação das rupturas na história das idéias (sic), a exposição dos períodos longos na história propriamente dita” o que multiplicou “estratos, seu desligamento, a especificidade do tempo e das cronologias que lhes são próprias;” (FOUCAULT, 2008, p. 8), tal análise e abordagem permitem questionar um falso evolucionismo do pensamento humano e um progresso da consciência, que se trata de uma herança do pensamento da Razão moderna, desconstruindo falsas teleologias e meta-narrativas.

Le Goff (1998) nos diz que Foucault “é um dos maiores historiadores novos. […] introduziu alguns novos objetos ‘provocadores’ da história e pôs em evidência uma das grandes viragens da história ocidental […]: a segregação dos desviados;” (LE GOFF, 1994, p. 103), dentre as contribuições oferecidas por Michel Foucault desde A História da Loucura podemos citas a crítica documental, demonstrando que “O documento não é o feliz instrumento de uma história que seria em si mesma, e de pleno direito, memória; a história é, para uma sociedade, uma certa maneira de dar status e elaboração à massa documental de que ela não se separa.” (FOUCAULT, 2008, p. 8).

Patrícia O’brien (2001) destaca que: “A controvertida obra de eleva-se Foucault como uma abordagem alterativa na nova história da cultura.” (OBRIEN, 2001, p. 35). Foucault nos ensina que através das descontinuidades a arqueologia permite “individualizar os domínios”, que se torna peça fundamental do discurso e da prática do historiador, destacando que em diferentes épocas e temporalidades, se constituíram verdades (leia-se discurso) diferentes, que vigoraram em determinada época, constituindo os saberes e as práticas dos e sobre os indivíduos.

TEXTOS CITADOS:

FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber; tradução de Luiz Felipe Baeta Neves, -7ed. – Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.

FOUCAULT, Michel. História da loucura na Idade Clássica. São Paulo: Editora Perspectiva S.A, 1972.

LE GOFF, Jacques. História e memória; tradução Bernardo Leitão … [et al.] – 3ª ed. – Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1994.

MACHADO, Roberto. Por uma genealogia do poder. In: FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. – 28ª ed. – Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014.

REVEL, Judith. Michel Foucault: conceitos essenciais; tradução Maria do Rosário Gregolin et al. São Carlos: Claraluz, 2005. 96 p.

O’BRIEN, Patrícia. A história da cultura de Michel Foucault. In: HUNT, Lynn. A nova história cultural. – Trad. Jefferson Luiz Camargo. 2ª Ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2001. 317 p.