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A invenção do cotidiano de Certeau

Michel de Certeau

Michel de Certeau

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. as artes de fazer; 16ª Ed. Tradução de Ephraim Ferreira Alves. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2009. (pp. 35-55); (pp. 86-100).

Em sua obra A invenção do cotidiano no volume um “Artes de fazer”, Michel de Certeau trata a cerca de uma densa e complexa pesquisa sobre o cotidiano das sociedades ditas “submissas”, compostas de consumidores passivos. Nascida de um questionamento, essa pesquisa visa encabeçar o modo como os usuários do sistema operam no seu dia-a-dia, de que forma a multidão de passantes recebe, absorve e utiliza os produtos gerados por uma parcela “produtora”, considerada “dominante”, demonstrando suas práticas e representações.

Desfocando da dicotomia entre erudito e popular, conceitos que são destituídos, a pesquisa volta-se para as operações efetuadas pelos usuários dos produtos da cultura de massas que lhes são oferecidos no mercado. O que fazem com eles? Como consomem? São algumas dessas perguntas que norteiam o interesse de Michel de Certeau em sua pesquisa.

Os rumos tomados no trabalho de Certeau tem possibilitado novos caminhos à serem trilhados pelos historiadores das culturas, desperta o estudo sobre as massas como sujeitos de história e produtores da mesma, não apenas como meros reprodutores dos discursos, mas como agentes que reinterpretam esses discursos e deles fazem usufruto no seu cotidiano. Novos rumos se tornam possíveis porque Certeau desperta “seu interesse pelos ‘sujeitos’ produtores e receptores de cultura” (BARROS, 2011, p.41).

Os sujeitos que sua pesquisa irá estudar são aqueles que ocupam um lugar ordinário, possuidores de práticas “comuns”, Certeau não escolhe um ator, não dá rosto à sua pesquisa, muito pelo contrário, ele busca as massas, querendo destituir o “atomismo social” e por meio de sua analise das multidões “Introduzi-las em experiências particulares” (CERTEAU, 2009, p. 35). Debruçar-se sobre as artes de fazer, caminhar, ler, habitar, cozinhar, em suma as ações cotidianas realizadas por muitos indivíduos que compõem a multidão sem rosto à qual Certeau se refere em sua pesquisa, remete ao que todo e qualquer indivíduo deve realizar todos os dias, haja vista que as relações entre os indivíduos são sempre sociais e por estas determinadas, em que o individuo “é o lugar onde atua uma pluralidade (e muitas vezes contraditória) de suas determinações relacionais.” (CERTEAU, 2009, p. 37).

Certeau quer saber o que os sujeitos “fabricam” com os produtos que recebem, compram, enfim “consomem”. De acordo com Certeau este homem ordinário ao receber as informações veiculadas na televisão, os relatos dos jornais ou produtos que compra no supermercado está exercendo outra produção, que é classificada como ‘consumo’. Esta forma de produção é ‘silenciosa’, ‘astuciosa’ e ‘quase invisível’, acontece nas miudezas do dia-a-dia, não se percebe o emprego e as apropriações que são impostos por um discurso econômico de caráter dominante, o sujeito que consome exerce uma prática que “é capaz de subverter e jogar com as imposições, jamais sendo redutíveis a elas” (OHARA, 2012, p. 453).

A presença e a circulação de uma representação (ensinada como o código da promoção socioeconômica por pregadores, por educadores ou por vulgarizadores) não indicam de modo algum o que ela é para seus usuários. É ainda necessário analisar sua manipulação pelos praticantes que não a fabricam. (CERTEAU, 2009, p. 39).

O usuário subverte esta ordem, não necessariamente modificando-a, ou mesmo rejeitando-a, mas usando-as para outras finalidades que não aquelas instituídas pelo sistema, do qual não podem fugir, portanto burlam o sistema, aproveitando-se das brechas da lei. O usuário realiza uma ‘bricolagem’ desta “economia cultural dominante” de acordo com seus interesses e necessidades, ou seja, o usuário personaliza o sistema de modo que lhe melhor aprouver.

O retrato dessa subversão dos usuários é o passeur, do francês “passante”, um passeur “desafia as fronteiras e limites estabelecidos”, sua função é atravessar coisas e pessoas, o passeur é um contrabandista, um atravessador. O passeur está na contramão da ordem estabelecida em que ele, como representante usuário com suas astúcias de acordo com Ohara, se apresenta “frente às imposições objetivas colocadas em seu caminho, ele cria atalhos, desloca certezas e subverte o status quo.” (OHARA, 2012, p. 454).

E é justamente a multidão de passantes, sem rosto, que Certeau irá se debruçar para compreender as relações de poderes, que como também observou Foucault são microfísicas, capilares. No entanto, Certeau as compreende como produtoras não de dominações, nem de repressões totais e absolutas, são relações multidimensionais e complexas, cujo foco de Michel de Certeau incidirá nas práticas de subversão dos instrumentos de poder, onde Foucault analisa como vigilantes e normalizadores. Deste modo essas práticas se constituem como uma “antidisciplina”.

A multidão de passante irá se valer como nos diz Certeau, de táticas para burlar as estratégias do sistema produtor, de ordem “dominante”. De acordo com José D’Assunção Barros: “As ‘táticas inventadas pelo individuo comum confrontam-se, dessa maneira, com as ‘estratégias’ veiculadas pela indústria cultural e pelos grandes sistemas de manipulação e dominação do mercado consumidor.” (2011, p. 42). De que forma? “As táticas do consumo, engenhosidades do fraco para tirar partido do forte” (CERTEAU, p. 44, 2009), atuam em oposição às estratégias de poder e dominação, a “estratégia” nos termos do próprio Certeau são cálculos de relações de força, estabelecendo um lugar que servirá de base para gerir as relações de quem o elabora com sua exterioridade. Um general antes da guerra planeja uma estratégia em sua mente, para que seus soldados durante a batalha façam exatamente o que ele especula, um técnico de futebol faz o mesmo com o seu time, podemos dizer que se tratam de relações previsíveis, coisas que são previstas de acontecer. A disciplina é uma estratégia. O poder é uma estratégia.

Em sua contrapartida atua a tática ela não pode se dispor de uma base, ela é improviso; A tática é dependente do tempo e das circunstancias, enfim, a tática joga com ocasiões, com o imprevisível, é oportunidade. O fraco, o pobre, o “dominado” joga com as táticas, para tirar proveito do forte, rico, “dominante”. Exemplos disso temos o arqueiro-saqueador Robin Hood, que na floresta de Sheerwood escondia os espólios dos saques que fazia aos poderosos para distribuir com os mais fracos; João Grilo, personagem central do Auto da Comparecida do saudoso Ariano Suassuna, usa de suas táticas, como a mentira, para ludribiar atuando nas ocasiões e oportunidades para se dar bem frente aos poderosos, mas tais táticas podem nos ser ainda mais próximas, é o que fazemos todos os dias; As práticas cotidianas como tanto assevera Certeau são táticas, são as “maneiras de fazer” que o consumidor tem para com o produtor, pequenas astúcias do dia-a-dia, glórias do cotidiano que tem o homem ordinário. Constituem-se saberes milenares, utilizados pelos animais que se camuflam para vencer o seu caçador, portanto, o cotidiano e sua invenção, bem como sua reinvenção, não são simples reproduções e apropriações impostas hierarquicamente, ela sofre mudanças, sofre alteração, reapropriação são as “mil maneiras de caça não autorizada” criadas pelo usuário todos os dias para subverter e sobreviver ao sistema.

Outras fontes:

BARROS, José D’Assunção. A Nova História Cultural: considerações sobre o seu universo conceitual e seus diálogos com outros campos históricos. Cadernos de História. – v. 12, n. 16, 1º sem. Belo Horizonte, 2011. (pp. 41 – 42).

OHARA, João Rodolfo Munhoz. O historiador como passeur: considerações sobre Michel de Certeau e o ofício do historiador. Cad. Pesq. Cdhis, Uberlândia, v.25, n.2, jul./dez. 2012. (pp. 253 – 255).