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Foucault, o arqueólogo.

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Michel Foucault

Em 1961 era lançado na França História da Loucura, que trouxe no seu bojo uma vasta gama de inovações teórico-metodológicas, no desenvolvimento de sua pesquisa Michel Foucault se dispôs a estudar de que maneira, em diferentes épocas e sem se limitar as fronteiras que delimitam as disciplinas, como o saber sobre o louco teve diferentes configurações e de que modo em determinado momento passou a constituir um novo saber, a psiquiatria, que nada mais é do que “a radicalização de um processo de dominação do louco” (MACHADO, 2014, p. 8). Mas que inovações são estas, que são demarcadas a partir de 1961? Eis uma Arqueologia.

De acordo com Judith Revel (2005), o método arqueológico caracterizou o método de pesquisa de Foucault até o final dos anos setenta. (Cf. REVEL, 2005, p. 16). Antes é necessário responder, o que é arqueologia? Basicamente, pode se dizer que a arqueologia estuda os vestígios deixados pelos homens, visando descobrir um passado desconhecido.

Dito isto, como vem a ser o trabalho do arqueólogo? A arqueologia trabalha com prospecção, escavação. Através dos vestígios recolhidos o arqueólogo busca aprender mais sobre o passado humano. O trabalho do arqueólogo se inicia em uma investigação bibliográfica, logo depois o processo de prospecção, que faz parte do processo de levantamento e consiste no trabalho metodológico para preservar o local de estudo, durante o levantamento é crucial observar as mudanças que começam a surgir no solo, a mudança de coloração que destacam as camadas estratigráficas; cabe salientar a relação transdisciplinar da arqueologia, ela encontra-se sempre relacionada a outras disciplinas tomando-lhe empréstimo de métodos que lhe darão suporte ao longo da pesquisa. Através dos objetos encontrados e da pesquisa feita, os arqueólogos entendem que servem para compreender as formas de pensamento, o conjunto de valores, e porque não, a própria sociedade que investigam.

Eis o que Foucault propõe ao utilizar-se do método arqueológico na sua pesquisa. Ao implacar uma arqueologia Foucault buscou:

Ao invés de estudar a história das ideias em sua evolução, ele se concentra sobre recortes históricos precisos […] descrever não somente a maneira pela qual os diferentes saberes locais se determinam a partir da constituição de novos objetos que emergiram num certo momento, as como eles se relacionam entre si e desenham de maneira horizontal uma configuração epistêmica coerente. (REVEL, 2005, p. 16).

Foucault passa então a desconstruir a ideia de uma história linear, que segue uma evolução a partir de uma origem e é continua partindo do menos para o mais avançado ou melhor, cada época é analisada dentro de suas especificidades. Um saber não é superior a outro, pois cada saber é “considerado como possuindo positividade específica, a positividade do que foi efetivamente dito e deve ser aceito como tal, e não julgado com base em um saber posterior e superior” (MACHADO, 2014, p. 7).

Cada época histórica produziu seus discursos e saberes próprios, que assinalam a sua marca temporal, o seu pertencimento a dada época e espacialidade. Tais marcas produzidas constituem os arquivos de uma época (ou como denomina o próprio Foucault, de uma episteme). Os arquivos são os traços dos discursos produzidos em dada época, que podem permitir em certa medida e dada as devidas condições a reconstituição dos saberes, conjuntos de regras e discursos produzidos historicamente. Os arquivos são camadas estratigráficas, sobre as quais Foucault irá fazer um levantamento da massa documental relacionada a estas épocas; escavando e analisando o corpus destes documentos que se tornam monumentos, constituindo-se em camadas, estratos, em que se busca reconhecer “em profundidade o que tinham sido, uma massa de elementos que devem ser isolados, agrupados, tornados pertinentes, inter-relacionados, organizados em conjuntos.” (FOUCAULT, 2008, p. 8).

O propósito da arqueologia é estabelecer o modo como os saberes emergiam e as transformações que sofriam, explicando as semelhanças e diferenças entre estes saberes e analisando as condições que permitem tal emergência, ressaltando que “não se trata de considera-lo como efeito ou resultante” (MACHADO, 2014, p.12), mas destacar o jogo estratégico, o embate de forças das quais ele é peça fundamental.

Os saberes estão ligados à um processo de racionalização, em que por meio do discurso da Razão se inicia a distinção entre científico e não-científico, positivo e negativo, normal e anormal. Os saberes constituem uma ordenação do mundo (e de indivíduos), baseados numa relação poder-saber. Baseado no discurso da racionalidade os saberes sobre o louco sofre alterações e reconfigurações, durante a Idade Média “Os loucos tinham então uma existência facilmente errante. As cidades escorraçavam-nos de seus muros; deixava-se que corressem pelos campos distantes, quando não eram confiados a grupos de mercadores e peregrinos. “ (FOUCAULT, 1972, p. 13), neste contexto o louco deveria viver em liberdade. Na Idade Clássica a situação do louco era bem diferente, ele era visto como uma desrazão, a irracionalidade dentro da racionalidade, deveriam ser então, adequados a norma.

Foucault destaca que:

A décima parte aproximadamente das prisões feitas em Paris, com destino ao Hospital Geral, diz respeito a ‘insanos’, homens ‘em demência’, pessoas ‘de espírito alienado’, ‘pessoas que se tornaram inteiramente loucas’. Entre estas e as outras, nenhum signo de diferença. (FOUCAULT, 1972, p. 125).

Em resumo, foi a época o grande internamento, aqueles que fugiam moralmente à norma fora exclusos da sociedade, ladrões, loucos, devassos, todos deveriam ficar reclusos dentro dos hospitais gerais. Na modernidade o discurso de exclusão se radicaliza, ao invés de libertá-lo ao se descobrir através da psiquiatria que a loucura é uma “doença da mente”, o discurso médico aprisiona o louco no hospício, uma instituição específica de internamento.

O método arqueológico desenvolvido ao longo da pesquisa de Michel Foucault trouxe uma ampliação de abordagens e métodos, prezando pela transdisciplinaridade, o constante diálogo com outros inúmeros campos de saber, em A Arqueologia do Saber (1969) Foucault destaca que a História agora se volta para a Arqueologia (antes era o contrário) para “restabelecer” o sentido histórico dos discursos. A análise arqueológica, permite dentre outras coisas, “a multiplicação das rupturas na história das idéias (sic), a exposição dos períodos longos na história propriamente dita” o que multiplicou “estratos, seu desligamento, a especificidade do tempo e das cronologias que lhes são próprias;” (FOUCAULT, 2008, p. 8), tal análise e abordagem permitem questionar um falso evolucionismo do pensamento humano e um progresso da consciência, que se trata de uma herança do pensamento da Razão moderna, desconstruindo falsas teleologias e meta-narrativas.

Le Goff (1998) nos diz que Foucault “é um dos maiores historiadores novos. […] introduziu alguns novos objetos ‘provocadores’ da história e pôs em evidência uma das grandes viragens da história ocidental […]: a segregação dos desviados;” (LE GOFF, 1994, p. 103), dentre as contribuições oferecidas por Michel Foucault desde A História da Loucura podemos citas a crítica documental, demonstrando que “O documento não é o feliz instrumento de uma história que seria em si mesma, e de pleno direito, memória; a história é, para uma sociedade, uma certa maneira de dar status e elaboração à massa documental de que ela não se separa.” (FOUCAULT, 2008, p. 8).

Patrícia O’brien (2001) destaca que: “A controvertida obra de eleva-se Foucault como uma abordagem alterativa na nova história da cultura.” (OBRIEN, 2001, p. 35). Foucault nos ensina que através das descontinuidades a arqueologia permite “individualizar os domínios”, que se torna peça fundamental do discurso e da prática do historiador, destacando que em diferentes épocas e temporalidades, se constituíram verdades (leia-se discurso) diferentes, que vigoraram em determinada época, constituindo os saberes e as práticas dos e sobre os indivíduos.

TEXTOS CITADOS:

FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber; tradução de Luiz Felipe Baeta Neves, -7ed. – Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.

FOUCAULT, Michel. História da loucura na Idade Clássica. São Paulo: Editora Perspectiva S.A, 1972.

LE GOFF, Jacques. História e memória; tradução Bernardo Leitão … [et al.] – 3ª ed. – Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1994.

MACHADO, Roberto. Por uma genealogia do poder. In: FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. – 28ª ed. – Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014.

REVEL, Judith. Michel Foucault: conceitos essenciais; tradução Maria do Rosário Gregolin et al. São Carlos: Claraluz, 2005. 96 p.

O’BRIEN, Patrícia. A história da cultura de Michel Foucault. In: HUNT, Lynn. A nova história cultural. – Trad. Jefferson Luiz Camargo. 2ª Ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2001. 317 p.

A invenção do cotidiano de Certeau

Michel de Certeau

Michel de Certeau

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. as artes de fazer; 16ª Ed. Tradução de Ephraim Ferreira Alves. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2009. (pp. 35-55); (pp. 86-100).

Em sua obra A invenção do cotidiano no volume um “Artes de fazer”, Michel de Certeau trata a cerca de uma densa e complexa pesquisa sobre o cotidiano das sociedades ditas “submissas”, compostas de consumidores passivos. Nascida de um questionamento, essa pesquisa visa encabeçar o modo como os usuários do sistema operam no seu dia-a-dia, de que forma a multidão de passantes recebe, absorve e utiliza os produtos gerados por uma parcela “produtora”, considerada “dominante”, demonstrando suas práticas e representações.

Desfocando da dicotomia entre erudito e popular, conceitos que são destituídos, a pesquisa volta-se para as operações efetuadas pelos usuários dos produtos da cultura de massas que lhes são oferecidos no mercado. O que fazem com eles? Como consomem? São algumas dessas perguntas que norteiam o interesse de Michel de Certeau em sua pesquisa.

Os rumos tomados no trabalho de Certeau tem possibilitado novos caminhos à serem trilhados pelos historiadores das culturas, desperta o estudo sobre as massas como sujeitos de história e produtores da mesma, não apenas como meros reprodutores dos discursos, mas como agentes que reinterpretam esses discursos e deles fazem usufruto no seu cotidiano. Novos rumos se tornam possíveis porque Certeau desperta “seu interesse pelos ‘sujeitos’ produtores e receptores de cultura” (BARROS, 2011, p.41).

Os sujeitos que sua pesquisa irá estudar são aqueles que ocupam um lugar ordinário, possuidores de práticas “comuns”, Certeau não escolhe um ator, não dá rosto à sua pesquisa, muito pelo contrário, ele busca as massas, querendo destituir o “atomismo social” e por meio de sua analise das multidões “Introduzi-las em experiências particulares” (CERTEAU, 2009, p. 35). Debruçar-se sobre as artes de fazer, caminhar, ler, habitar, cozinhar, em suma as ações cotidianas realizadas por muitos indivíduos que compõem a multidão sem rosto à qual Certeau se refere em sua pesquisa, remete ao que todo e qualquer indivíduo deve realizar todos os dias, haja vista que as relações entre os indivíduos são sempre sociais e por estas determinadas, em que o individuo “é o lugar onde atua uma pluralidade (e muitas vezes contraditória) de suas determinações relacionais.” (CERTEAU, 2009, p. 37).

Certeau quer saber o que os sujeitos “fabricam” com os produtos que recebem, compram, enfim “consomem”. De acordo com Certeau este homem ordinário ao receber as informações veiculadas na televisão, os relatos dos jornais ou produtos que compra no supermercado está exercendo outra produção, que é classificada como ‘consumo’. Esta forma de produção é ‘silenciosa’, ‘astuciosa’ e ‘quase invisível’, acontece nas miudezas do dia-a-dia, não se percebe o emprego e as apropriações que são impostos por um discurso econômico de caráter dominante, o sujeito que consome exerce uma prática que “é capaz de subverter e jogar com as imposições, jamais sendo redutíveis a elas” (OHARA, 2012, p. 453).

A presença e a circulação de uma representação (ensinada como o código da promoção socioeconômica por pregadores, por educadores ou por vulgarizadores) não indicam de modo algum o que ela é para seus usuários. É ainda necessário analisar sua manipulação pelos praticantes que não a fabricam. (CERTEAU, 2009, p. 39).

O usuário subverte esta ordem, não necessariamente modificando-a, ou mesmo rejeitando-a, mas usando-as para outras finalidades que não aquelas instituídas pelo sistema, do qual não podem fugir, portanto burlam o sistema, aproveitando-se das brechas da lei. O usuário realiza uma ‘bricolagem’ desta “economia cultural dominante” de acordo com seus interesses e necessidades, ou seja, o usuário personaliza o sistema de modo que lhe melhor aprouver.

O retrato dessa subversão dos usuários é o passeur, do francês “passante”, um passeur “desafia as fronteiras e limites estabelecidos”, sua função é atravessar coisas e pessoas, o passeur é um contrabandista, um atravessador. O passeur está na contramão da ordem estabelecida em que ele, como representante usuário com suas astúcias de acordo com Ohara, se apresenta “frente às imposições objetivas colocadas em seu caminho, ele cria atalhos, desloca certezas e subverte o status quo.” (OHARA, 2012, p. 454).

E é justamente a multidão de passantes, sem rosto, que Certeau irá se debruçar para compreender as relações de poderes, que como também observou Foucault são microfísicas, capilares. No entanto, Certeau as compreende como produtoras não de dominações, nem de repressões totais e absolutas, são relações multidimensionais e complexas, cujo foco de Michel de Certeau incidirá nas práticas de subversão dos instrumentos de poder, onde Foucault analisa como vigilantes e normalizadores. Deste modo essas práticas se constituem como uma “antidisciplina”.

A multidão de passante irá se valer como nos diz Certeau, de táticas para burlar as estratégias do sistema produtor, de ordem “dominante”. De acordo com José D’Assunção Barros: “As ‘táticas inventadas pelo individuo comum confrontam-se, dessa maneira, com as ‘estratégias’ veiculadas pela indústria cultural e pelos grandes sistemas de manipulação e dominação do mercado consumidor.” (2011, p. 42). De que forma? “As táticas do consumo, engenhosidades do fraco para tirar partido do forte” (CERTEAU, p. 44, 2009), atuam em oposição às estratégias de poder e dominação, a “estratégia” nos termos do próprio Certeau são cálculos de relações de força, estabelecendo um lugar que servirá de base para gerir as relações de quem o elabora com sua exterioridade. Um general antes da guerra planeja uma estratégia em sua mente, para que seus soldados durante a batalha façam exatamente o que ele especula, um técnico de futebol faz o mesmo com o seu time, podemos dizer que se tratam de relações previsíveis, coisas que são previstas de acontecer. A disciplina é uma estratégia. O poder é uma estratégia.

Em sua contrapartida atua a tática ela não pode se dispor de uma base, ela é improviso; A tática é dependente do tempo e das circunstancias, enfim, a tática joga com ocasiões, com o imprevisível, é oportunidade. O fraco, o pobre, o “dominado” joga com as táticas, para tirar proveito do forte, rico, “dominante”. Exemplos disso temos o arqueiro-saqueador Robin Hood, que na floresta de Sheerwood escondia os espólios dos saques que fazia aos poderosos para distribuir com os mais fracos; João Grilo, personagem central do Auto da Comparecida do saudoso Ariano Suassuna, usa de suas táticas, como a mentira, para ludribiar atuando nas ocasiões e oportunidades para se dar bem frente aos poderosos, mas tais táticas podem nos ser ainda mais próximas, é o que fazemos todos os dias; As práticas cotidianas como tanto assevera Certeau são táticas, são as “maneiras de fazer” que o consumidor tem para com o produtor, pequenas astúcias do dia-a-dia, glórias do cotidiano que tem o homem ordinário. Constituem-se saberes milenares, utilizados pelos animais que se camuflam para vencer o seu caçador, portanto, o cotidiano e sua invenção, bem como sua reinvenção, não são simples reproduções e apropriações impostas hierarquicamente, ela sofre mudanças, sofre alteração, reapropriação são as “mil maneiras de caça não autorizada” criadas pelo usuário todos os dias para subverter e sobreviver ao sistema.

Outras fontes:

BARROS, José D’Assunção. A Nova História Cultural: considerações sobre o seu universo conceitual e seus diálogos com outros campos históricos. Cadernos de História. – v. 12, n. 16, 1º sem. Belo Horizonte, 2011. (pp. 41 – 42).

OHARA, João Rodolfo Munhoz. O historiador como passeur: considerações sobre Michel de Certeau e o ofício do historiador. Cad. Pesq. Cdhis, Uberlândia, v.25, n.2, jul./dez. 2012. (pp. 253 – 255).

Michel Foucault e a Genealogia

Michel Foucault

Michel Foucault

O método genealógico de Foucault trata-se de uma inovação possibilitada pelas contribuições do pós-estruturalismo. A genealogia inspirada em Nietzsche busca a escrita de uma história que recusa a perfeição das origens, reconhecendo os acontecimentos como tramas de discursos, que se cruzam e entrecruzam em movimentos e forças constantes, circulares, elípticos, helicoidais, que formam e transformam um contexto. “A genealogia não se opõe à história […]; ela se opõe, ao contrário, ao desdobramento meta-histórico das significações ideais e das indefinidas teleologias. Ela se opõe à pesquisa das origens” (FOUCAULT, 2010, p. 16).

Como vem a apontar Foucault em Nietzsche, a Genealogia e a História o homem gosta de pensar as coisas como “saindo brilhantes das mãos do criador”, uma visão de fatos concretos, datáveis, estáticos e fixos, que estabelecem padrões e uma fácil verificação. Isso se deve à tradição cultural ocidental de viés platônico-cristão de buscar sempre a verdade, que está impregnado e naturalizado no cotidiano, no discurso religioso, científico, jurídico, etc.  (Cf. JENKINS, 2001, p. 54-55).

Em sua Genealogia, Foucault vem romper com tal perspectiva, não existem tais origens. Foucault trabalha com gênese, nascimento, formação, construção, jogo, rupturas, continuidades. Todos esses usos remetendo ao processo histórico como algo em constante formulação e reformulação, jamais acabado. Demonstrando a História como fruto das constantes lutas dos discursos e suas relações de saber-poder ao longo do tempo. Como aponta Durval Muniz “os objetos e sujeitos históricos são feitos de múltiplos gomos, das costuras […], de diferentes temas, enunciados, conceitos, conteúdos, formas” (ALBUQUERQUE JR., 2007, p. 168).

Os sujeitos e os objetos, e a própria História, são formados em uma vasta gama de discursos, cada um com seus interesses particulares, em uma rede de emaranhados, tessituras, um constante cabo de força de relações de poder. Cada um com sua gênese historicamente construída e particular.

Os leitores e estudiosos de Michel Foucault colocam-no em três “fases” de pesquisa, cada uma complementando seu projeto de estudos. A Genealogia é considerada sua segunda “fase”, inaugurada na década de 1970, na qual ele busca compreender a formação dos discursos e das relações de poder ao longo do tempo, dividindo historicamente a sociedade ocidental em três epistemes: renascentista, clássica e moderna.

A genealogia vem complementar a arqueologia, ampliando e aprofundando sua pesquisa, nesta fase Foucault pergunta-se “não só o que forma os saberes, as epistemes, como também qual é a sua gênese, como eles se formam.” (CARDOSO JR., 2006, p. 146). Em cada episteme que Foucault analisa as relações de poder irão constituir a prática dos discursos. Deste modo tais relações irão produzir saberes, aqui as relações de poder constituem-se como estratégias que visam legitimar um discurso, portanto, legitimar um saber. Por exemplo, a oposição entre Fé e Razão, na qual a burguesia desenvolve estratégias de poder para legitimar a Razão ao invés da Fé, substituindo-a como o Espírito Universal que guia e dá sentido à História.

O método genealógico analisa os acontecimentos não em sua origem, mas no “passou a ser”, no “tornou-se”. Ele busca “reencontrar as diferentes cenas onde eles desempenharam papéis distintos” (FOUCAULT, 2006, p. 15). Valendo-se da arqueologia assinala as lacunas onde os discursos vigentes deixaram de ser, marcando assim as rupturas, dando vez à um novo discurso. Vale salientar que todos os discursos e relações de poder que constituem os saberes não devem ser compreendidos como “posteriores ou superiores”, mas ser “considerado como possuindo posivitidade específica” (MACHADO, 2006, VII). Desta forma cada saber produz seus avanços, que devem ser analisados em seu contexto específico e jamais comparados como mais ou menos evoluído.

Objetivando agora compreender como os saberes eram produzidos pelas estratégias de poder, Foucault assinala o seu método genealógico em duas obras principais, Vigiar e Punir (1975) e o volume um da História da Sexualidade: A vontade de Saber (1976).

O poder não é homogêneo, ele é um prática, e como uma prática, ele é historicamente constituído. O poder atrelado ao Estado é, pois, “uma articulação com poderes, locais, específicos, circunscritos” (MACHADO, 2006, XI). O exercício do poder se dá de diferentes e variados modos.

Compreender o conceito de poder em Foucault se faz necessário para a compreensão do método da genealogia, o poder não se trata de algo que é possível concentrar nas mãos de um individuo, ou numa única instituição, encontra-se disseminado em focos, de forma a estabelecer relações microfísicas. O poder é “uma questão de exercício, não de posse.” (CARDOSO JR, 2006, p. 148). Consiste em práticas de poder, que desta forma trata-se de uma força que se exerce obedecendo a interesses estratégicos, visando legitimar uma realidade (leia-se discurso).

Em Vigiar e Punir, Foucault demonstra como ao longo do tempo se exercem diferentes práticas de poder, e que a culminância de todo o mecanismo de poder incide sobre o corpo, tendo como foco principal os instrumentos punitivos. Na episteme do Renascimento, as punições eram feitas na materialidade do corpo do acusado. É a época dos grandes espetáculos de tortura, os suplícios, que através da dita materialidade expressava o poder do Rei, lesado pelo ato ilegal e que por isso deveria punir o corpo do índividuo.

Foucault analisa que a partir dos séculos XVII e XVIII emerge um novo discurso, de “Humanização das penas”, onde se alteram as estratégias de poder e visa-se agora “classificar as penas e os crimes”, estabelecendo uma ligação de justiça entre crime e punição visando reeducar e ressocializar o criminoso, para corrigir a sua moral. As penitenciárias, e o sistema carcerário como um todo, tem um papel preponderante nas estratégias de poder, assim como em outras instituições como o hospital, a clínica, a escola, o exército. É a representação da sociedade disciplinar que visa a docilização dos corpos, o ponto máximo da culminância do poder, de onde vem e para onde parte todo o sistema. O corpo, que será alvo de “controle social”, em que “O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe.” (FOUCAULT, 2013, p. 133).

Desta forma a sociedade disciplinar encontra-se num diagrama de controle e de vigilânia constante, assinalado com o panoptismo, que expõe agora o corpo a “máxima visibilidade” (CARDOSO JR., 2006, p.152), tornando o individuo, controlável em todos os seus aspectos, o que leva a uma vigilância constante de si.

Concebido desta forma, o método genealógico é uma negação das origens, é uma ida ao caos das fontes e das diferentes épocas e contextos históricos como propunha Nietzsche, pois, não existe a perfeição das origens, e nem a história é uma história de quedas e decadência, ou de um eterno devir que marcha para numa linearidade evolutiva das metanarrativas. Como disse O’brien “Foucault reformulou a compreensão histórica muito mais através da prática que da teoria” (2001, p.68), ou seja, através da sua prática de pesquisa Foucault possibilitou uma grande abertura no campo da historiografia, permitindo novas abordagens da história, possibilitando-a repensar-se, através de novos métodos e possibilidades, dando voz aos excluídos (o louco, o presidiário, o parricida). Foucault tirou os acontecimentos do campo do factual, eles tem uma formação anterior, demonstrando que tudo na história tem um interesse, e que nada acontece inocentemente, são construções, maquinações e estratégias de poder em constante luta.

* Este pequeno ensaio foi utilizado na atividade avaliativa da disciplina de Teoria da História III do semestre 2014.2.

REFERÊNCIAS:

ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A História em jogo: a atuação de Michel Foucault no campo da historiografia. IN:__________. História: A arte de inventar o passadoEnsaios de teoria da história. – Bauru, SP: EDUSC, 2007. 256 p.

CARDOSO JÚNIOR, Hélio Roberto. Foucault em vôo rasante. In: CARVALHO, Alonso Bezerra de. SILVA, Wilson Carlos Lima da. (orgs.). Sociologia e Educação: leituras e interpretações. São Paulo: Editora Avercamp, 2006.

FOUCAULT, Michel. Nietzsche, a Genealogia e a História. In: ________. Microfísica do poder. 22ª Ed. Rio de Janeiro: Graal, 2006.

___________  . Vigiar e punir: nascimento da prisão. (tradução de Raquel Ramalhete.) 41ª Ed. Petrópolis: Vozes, 2013. 291 p.

JENKINS, Keith. Algumas perguntas e algumas respostas. In: _______. A História repensada; Trad: Mário Vilela – São Paulo: Contexto, 2001. 120 p.

MACHADO, Roberto. Por uma genealogia do poder. In: FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 2010.

O’BRIEN, Patricia. A história da cultura de Michel Foucault. In: HUNT, Lynn. A nova história cultural. – Trad. Jefferson Luiz Camargo. 2ª Ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2001. 317 p.