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Ginzburg e o Paradigma Indiciário

Carlo Ginzburg

Carlo Ginzburg

O século XIX é palco para a formulação e construção de um novo paradigma, aplicável às ciências humanas, que foi constituído pouco-a-pouco em meio às contribuições de diversas áreas para compor o método/paradigma indiciário.

De modo que o próprio nome já permite certa inferência, este paradigma se baseia em indícios, em sinais, pistas, os pequenos detalhes, nos quais se permite reconstruir um todo – uma personalidade, uma individualidade, uma realidade – de modo que se tende à uma análise biográfica, e que, dentro de um contexto mais globalizante possibilita reconstruir um contexto histórico com alto grau de fidelidade. O paradigma indiciário, no campo da historiografia (mas não exclusivamente), permitiu uma mudança de foco dos historiadores, haja vista que os levou à uma análise mais particular, em que não se preocupam apenas no contexto global e passam a analisar a história dos sem-história, homens e mulheres que viviam em total anonimato escondidos entre as fontes arquivadas, prontos para serem descobertos, analisando o particular, puderam traçar de uma forma mais fidedigna o todo que compõe aquele contexto ao qual se inserem seus “personagens” em específico.

Este novo paradigma é constituído a partir do método desenvolvido pelo crítico de arte italiano Giovanni Morelli. Por meio do método indiciário, Morelli catalogou e classificou obras em diversos museus, por meio de análises minuciosas, focando nos “pormenores mais negligenciáveis” (GINZBURG, 1989, p.144), que segundo Morelli, eram possíveis como meio de identificar os artistas que conceberam à obra. “Ora, Morelli propusera-se buscar no interior de um sistema de signos culturalmente condicionados como pictórico, os signos tinham a voluntariedade dos sintomas (e da maior parte dos indícios)” (GINZBURG, 1989, p. 171).

A partir da análise destes indícios particulares, os mínimos sinais de cada obra, Morelli pôde distinguir e classificar, como um biólogo que cataloga as características fisiológicas de novas espécies, as características particulares de cada artista. O método indiciário moreliano permite diferenciar a obra original de uma replica, ou atribuí-la à sua verdadeira autoria, pois que, são os sinais que permitem identificar à que artista tal obra pertence, sinais que indicam a natureza psicológica do artista, partindo dessa perspectiva é possível reconstruir toda uma obra, toda a característica daquele artista em específico.

O método de análise proposto por Morelli veio a difundir-se em outras áreas de conhecimento erudito, como a investigação policial, através do personagem icônico de Sherlock Holmes, criado por Arthur Connan Doyle. Holmes em meio as suas atividades detetivescas, usa muito do que Morelli propôs para analisar obras de arte, como uma forma de solucionar crimes de aparência insolúvel. Da mesma forma que um mínimo detalhe de uma obra de Da Vince, Michelangelo ou Boticelli, entregava a sua autoria para Morelli, as pegadas ou cinzas de cigarro entregavam a autoria dos crimes para Holmes. O crítico da arte examina as obras de arte, o detetive as pistas de um crime. Em ambas os pequenos detalhes, quase imperceptíveis para um olho leigo tornam-se peça chave para a compreensão do todo.

Freud dialoga diretamente com o método moreliano, quando antes de sua análise da psicanálise. Se, para Morelli cada detalhe da obra revela uma característica particular do artista que a concebeu, para Freud cada mínima atitude involuntária revelam a sinuosidade profunda do inconsciente do seu paciente, trazendo à tona a raiz do problema psicológico, externando sua natureza inconsciente. Através destas minúcias reveladoras, Morelli mostra uma distinção do artista em meio ao seu processo cultural de criação, era uma forma de distinguir-se das escolas estéticas, uma forma de encontrar o Eu do artista naquela obra, Freud irá perceber, portanto, que as individualidades do método moreliano poderiam ser aplicáveis à psicanálise e na sua busca de desvendar o inconsciente humano através das atitudes despercebidas.

Ou seja, nos três casos, a se dizer, todos pertencentes aos saberes eruditos, os sinais, os símbolos, detalhes desprovidos de aparente importância, revelam a natureza complexa e profunda do problema. Para Morelli na forma de sinais imagéticos, para Freud eram os sintomas e na figura do Sr.Holmes os indícios, as pistas. A medicina, um saber tipicamente erudito, se constitui do paradigma indiciário, onde, o paciente no ato de procurar o médico, dizer-lhe quais os seus sintomas, o profissional da saúde através da observação dos sintomas, da analise do estado do paciente, de um estudo mais profundo dos seus exames, une o fio que revela os rastros, desvendando qual o problema de saúde do paciente.

O paradigma indiciário é galgado basicamente na experiência e na observação, é uma forma de conhecimento empírico, o empirismo é a unidade básica para que o homem em sua natureza possa conseguir conhecimento. Relaciono aqui o paradigma indiciário á leitura de Carl Sagan, quando discorrendo sobre o modo como existe uma forma de conhecimento empírico que é inerente ao ser humano, demonstra como os caçadores do povo !Kung San do deserto do Kalahari, já possuíam uma forma de ciência empírica, algo análogo ao paradigma indiciário. Sagan nos diz:  “Quase sempre leram corretamente a mensagem no solo. Os gnus, antílopes ou ocapis estão onde eles imaginaram, na quantidade e nas condições estimadas. A caçada é um sucesso.” (SAGAN, 2006, p.354). O paradigma indiciário é também um paradigma venatório, o homem através de toda sua história, frente a diversas situações adversas conseguiu aprender à ler os sinais deixados por exemplo, pela sua caça, e através de minuciosa  avaliação consegue interpretar e reconstituir o caminho feito pela sua presa, como nos afirma Ginzburg: “Se a realidade é opaca, existem zonas privilegiadas – sinais, indícios – que permitem decifra-la.”. É essa ideia que compõe essencialmente o método indiciário.

“As funções de correlação estão na cabeça dos caçadores” (SAGAN, 2006, p. 355) ou seja, o caçador, assim como o médico, ou o detetive, possui em sua vivência experimental os instrumentos cognoscitivos capazes de ler e interpretar tais sinais. Funcionam medindo as possibilidades, analisando alternativas, soluções possíveis. Ao longo de muitas gerações de homens e mulheres esse conhecimento é transmitido e aperfeiçoado através da observação. A oralidade foi importantíssima para manter viva a memória e as tradições populares. Tal qual fez Zadig, o sábio da Babilônia, usou da experiência e observação para deduzir segundo as pistas e sinais que encontrou como provavelmente seria a cadela perdida da rainha, sem se quer nunca tê-la visto, os caçadores liam e decifravam os rastros de suas presas e podiam inferir com alto grau de certeza para onde haviam ido, quantos eram, há quanto tempo, entre outros. Este paradigma já se encontrava no íntimo da natureza humana.

O paradigma indiciário é também um paradigma divinatório, calcado pela adivinhação com base na experiência, e não algo fora da realidade. Através de pequenos sinais, pode-se adivinhar com precisão algo de um passado de uma pessoa, como também quais prováveis atitudes aquela pessoa irá tomar, sem precisar recorrer á métodos sobrenaturais, apenas baseados na experiência e observação, bem como na leitura e interpretação dos sinais. Através da leitura e interpretação dos astros era possível inferir quando iria chover, por exemplo. O paradigma venatório e o divinatório voltam-se para dois opostos, o primeiro busca compreender e reconstituir o passado e o segundo busca decifrar o futuro.

Como saberes populares, se classifica tudo aquilo que não tem um cunho teórico, uma base científica para lhe dar sustentação, mas, encontra-se fortemente rico de aspectos deste novo paradigma emergido no século XIX. Os agricultores, pescadores, usam do método indiciário em seu cotidiano como forma de produzirem melhor, pois, é por meio da experiência que são capazes de interpretar os sinais e se, aquele solo é um bom solo para plantio, ou se “o mar não está pra peixe”.

Este é um paradigma semiótico, voltado para o estudo e análise dos sinais, das linguagens, uma ampliação da ciência dos signos. O paradigma indiciário consiste um importante progresso para a historiografia, torna-se um trunfo para o historiador. A história se vale desse paradigma para que, a partir da leitura de fontes, dos sinais e das minúcias, reconstruir o passado. O paradigma indiciário permite ao historiador especular, imaginar, como provavelmente se sucederam os acontecimentos e os fatos, com um alto grau de certeza partindo de uma leitura dos pormenores que eram antes ignorados, para agora revelar o contexto geral, revelar a profundidade do problema ao qual estavam incógnitos.

Referências:                                                                                                                       GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: Morfologia e história. (Tradução Federico Carotti) – São Paulo, Companhia das Letras, 1989.

SAGAN, Carl. O mundo assobrado por demônios: a ciência vista como uma vela no escuro. São Paulo. Companhia das Letras: 2006. (pp. 344-345).