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Sobre rafaelnobreg

Sou graduando em História pela Universidade Estadual da Paraíba, estou no 4º período do curso de licenciatura, atualmente sou pesquisador da Iniciação Científica Cnpq/UEPB.

Foucault, o arqueólogo.

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Michel Foucault

Em 1961 era lançado na França História da Loucura, que trouxe no seu bojo uma vasta gama de inovações teórico-metodológicas, no desenvolvimento de sua pesquisa Michel Foucault se dispôs a estudar de que maneira, em diferentes épocas e sem se limitar as fronteiras que delimitam as disciplinas, como o saber sobre o louco teve diferentes configurações e de que modo em determinado momento passou a constituir um novo saber, a psiquiatria, que nada mais é do que “a radicalização de um processo de dominação do louco” (MACHADO, 2014, p. 8). Mas que inovações são estas, que são demarcadas a partir de 1961? Eis uma Arqueologia.

De acordo com Judith Revel (2005), o método arqueológico caracterizou o método de pesquisa de Foucault até o final dos anos setenta. (Cf. REVEL, 2005, p. 16). Antes é necessário responder, o que é arqueologia? Basicamente, pode se dizer que a arqueologia estuda os vestígios deixados pelos homens, visando descobrir um passado desconhecido.

Dito isto, como vem a ser o trabalho do arqueólogo? A arqueologia trabalha com prospecção, escavação. Através dos vestígios recolhidos o arqueólogo busca aprender mais sobre o passado humano. O trabalho do arqueólogo se inicia em uma investigação bibliográfica, logo depois o processo de prospecção, que faz parte do processo de levantamento e consiste no trabalho metodológico para preservar o local de estudo, durante o levantamento é crucial observar as mudanças que começam a surgir no solo, a mudança de coloração que destacam as camadas estratigráficas; cabe salientar a relação transdisciplinar da arqueologia, ela encontra-se sempre relacionada a outras disciplinas tomando-lhe empréstimo de métodos que lhe darão suporte ao longo da pesquisa. Através dos objetos encontrados e da pesquisa feita, os arqueólogos entendem que servem para compreender as formas de pensamento, o conjunto de valores, e porque não, a própria sociedade que investigam.

Eis o que Foucault propõe ao utilizar-se do método arqueológico na sua pesquisa. Ao implacar uma arqueologia Foucault buscou:

Ao invés de estudar a história das ideias em sua evolução, ele se concentra sobre recortes históricos precisos […] descrever não somente a maneira pela qual os diferentes saberes locais se determinam a partir da constituição de novos objetos que emergiram num certo momento, as como eles se relacionam entre si e desenham de maneira horizontal uma configuração epistêmica coerente. (REVEL, 2005, p. 16).

Foucault passa então a desconstruir a ideia de uma história linear, que segue uma evolução a partir de uma origem e é continua partindo do menos para o mais avançado ou melhor, cada época é analisada dentro de suas especificidades. Um saber não é superior a outro, pois cada saber é “considerado como possuindo positividade específica, a positividade do que foi efetivamente dito e deve ser aceito como tal, e não julgado com base em um saber posterior e superior” (MACHADO, 2014, p. 7).

Cada época histórica produziu seus discursos e saberes próprios, que assinalam a sua marca temporal, o seu pertencimento a dada época e espacialidade. Tais marcas produzidas constituem os arquivos de uma época (ou como denomina o próprio Foucault, de uma episteme). Os arquivos são os traços dos discursos produzidos em dada época, que podem permitir em certa medida e dada as devidas condições a reconstituição dos saberes, conjuntos de regras e discursos produzidos historicamente. Os arquivos são camadas estratigráficas, sobre as quais Foucault irá fazer um levantamento da massa documental relacionada a estas épocas; escavando e analisando o corpus destes documentos que se tornam monumentos, constituindo-se em camadas, estratos, em que se busca reconhecer “em profundidade o que tinham sido, uma massa de elementos que devem ser isolados, agrupados, tornados pertinentes, inter-relacionados, organizados em conjuntos.” (FOUCAULT, 2008, p. 8).

O propósito da arqueologia é estabelecer o modo como os saberes emergiam e as transformações que sofriam, explicando as semelhanças e diferenças entre estes saberes e analisando as condições que permitem tal emergência, ressaltando que “não se trata de considera-lo como efeito ou resultante” (MACHADO, 2014, p.12), mas destacar o jogo estratégico, o embate de forças das quais ele é peça fundamental.

Os saberes estão ligados à um processo de racionalização, em que por meio do discurso da Razão se inicia a distinção entre científico e não-científico, positivo e negativo, normal e anormal. Os saberes constituem uma ordenação do mundo (e de indivíduos), baseados numa relação poder-saber. Baseado no discurso da racionalidade os saberes sobre o louco sofre alterações e reconfigurações, durante a Idade Média “Os loucos tinham então uma existência facilmente errante. As cidades escorraçavam-nos de seus muros; deixava-se que corressem pelos campos distantes, quando não eram confiados a grupos de mercadores e peregrinos. “ (FOUCAULT, 1972, p. 13), neste contexto o louco deveria viver em liberdade. Na Idade Clássica a situação do louco era bem diferente, ele era visto como uma desrazão, a irracionalidade dentro da racionalidade, deveriam ser então, adequados a norma.

Foucault destaca que:

A décima parte aproximadamente das prisões feitas em Paris, com destino ao Hospital Geral, diz respeito a ‘insanos’, homens ‘em demência’, pessoas ‘de espírito alienado’, ‘pessoas que se tornaram inteiramente loucas’. Entre estas e as outras, nenhum signo de diferença. (FOUCAULT, 1972, p. 125).

Em resumo, foi a época o grande internamento, aqueles que fugiam moralmente à norma fora exclusos da sociedade, ladrões, loucos, devassos, todos deveriam ficar reclusos dentro dos hospitais gerais. Na modernidade o discurso de exclusão se radicaliza, ao invés de libertá-lo ao se descobrir através da psiquiatria que a loucura é uma “doença da mente”, o discurso médico aprisiona o louco no hospício, uma instituição específica de internamento.

O método arqueológico desenvolvido ao longo da pesquisa de Michel Foucault trouxe uma ampliação de abordagens e métodos, prezando pela transdisciplinaridade, o constante diálogo com outros inúmeros campos de saber, em A Arqueologia do Saber (1969) Foucault destaca que a História agora se volta para a Arqueologia (antes era o contrário) para “restabelecer” o sentido histórico dos discursos. A análise arqueológica, permite dentre outras coisas, “a multiplicação das rupturas na história das idéias (sic), a exposição dos períodos longos na história propriamente dita” o que multiplicou “estratos, seu desligamento, a especificidade do tempo e das cronologias que lhes são próprias;” (FOUCAULT, 2008, p. 8), tal análise e abordagem permitem questionar um falso evolucionismo do pensamento humano e um progresso da consciência, que se trata de uma herança do pensamento da Razão moderna, desconstruindo falsas teleologias e meta-narrativas.

Le Goff (1998) nos diz que Foucault “é um dos maiores historiadores novos. […] introduziu alguns novos objetos ‘provocadores’ da história e pôs em evidência uma das grandes viragens da história ocidental […]: a segregação dos desviados;” (LE GOFF, 1994, p. 103), dentre as contribuições oferecidas por Michel Foucault desde A História da Loucura podemos citas a crítica documental, demonstrando que “O documento não é o feliz instrumento de uma história que seria em si mesma, e de pleno direito, memória; a história é, para uma sociedade, uma certa maneira de dar status e elaboração à massa documental de que ela não se separa.” (FOUCAULT, 2008, p. 8).

Patrícia O’brien (2001) destaca que: “A controvertida obra de eleva-se Foucault como uma abordagem alterativa na nova história da cultura.” (OBRIEN, 2001, p. 35). Foucault nos ensina que através das descontinuidades a arqueologia permite “individualizar os domínios”, que se torna peça fundamental do discurso e da prática do historiador, destacando que em diferentes épocas e temporalidades, se constituíram verdades (leia-se discurso) diferentes, que vigoraram em determinada época, constituindo os saberes e as práticas dos e sobre os indivíduos.

TEXTOS CITADOS:

FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber; tradução de Luiz Felipe Baeta Neves, -7ed. – Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.

FOUCAULT, Michel. História da loucura na Idade Clássica. São Paulo: Editora Perspectiva S.A, 1972.

LE GOFF, Jacques. História e memória; tradução Bernardo Leitão … [et al.] – 3ª ed. – Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1994.

MACHADO, Roberto. Por uma genealogia do poder. In: FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. – 28ª ed. – Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014.

REVEL, Judith. Michel Foucault: conceitos essenciais; tradução Maria do Rosário Gregolin et al. São Carlos: Claraluz, 2005. 96 p.

O’BRIEN, Patrícia. A história da cultura de Michel Foucault. In: HUNT, Lynn. A nova história cultural. – Trad. Jefferson Luiz Camargo. 2ª Ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2001. 317 p.

Ginzburg e o Paradigma Indiciário

Carlo Ginzburg

Carlo Ginzburg

O século XIX é palco para a formulação e construção de um novo paradigma, aplicável às ciências humanas, que foi constituído pouco-a-pouco em meio às contribuições de diversas áreas para compor o método/paradigma indiciário.

De modo que o próprio nome já permite certa inferência, este paradigma se baseia em indícios, em sinais, pistas, os pequenos detalhes, nos quais se permite reconstruir um todo – uma personalidade, uma individualidade, uma realidade – de modo que se tende à uma análise biográfica, e que, dentro de um contexto mais globalizante possibilita reconstruir um contexto histórico com alto grau de fidelidade. O paradigma indiciário, no campo da historiografia (mas não exclusivamente), permitiu uma mudança de foco dos historiadores, haja vista que os levou à uma análise mais particular, em que não se preocupam apenas no contexto global e passam a analisar a história dos sem-história, homens e mulheres que viviam em total anonimato escondidos entre as fontes arquivadas, prontos para serem descobertos, analisando o particular, puderam traçar de uma forma mais fidedigna o todo que compõe aquele contexto ao qual se inserem seus “personagens” em específico.

Este novo paradigma é constituído a partir do método desenvolvido pelo crítico de arte italiano Giovanni Morelli. Por meio do método indiciário, Morelli catalogou e classificou obras em diversos museus, por meio de análises minuciosas, focando nos “pormenores mais negligenciáveis” (GINZBURG, 1989, p.144), que segundo Morelli, eram possíveis como meio de identificar os artistas que conceberam à obra. “Ora, Morelli propusera-se buscar no interior de um sistema de signos culturalmente condicionados como pictórico, os signos tinham a voluntariedade dos sintomas (e da maior parte dos indícios)” (GINZBURG, 1989, p. 171).

A partir da análise destes indícios particulares, os mínimos sinais de cada obra, Morelli pôde distinguir e classificar, como um biólogo que cataloga as características fisiológicas de novas espécies, as características particulares de cada artista. O método indiciário moreliano permite diferenciar a obra original de uma replica, ou atribuí-la à sua verdadeira autoria, pois que, são os sinais que permitem identificar à que artista tal obra pertence, sinais que indicam a natureza psicológica do artista, partindo dessa perspectiva é possível reconstruir toda uma obra, toda a característica daquele artista em específico.

O método de análise proposto por Morelli veio a difundir-se em outras áreas de conhecimento erudito, como a investigação policial, através do personagem icônico de Sherlock Holmes, criado por Arthur Connan Doyle. Holmes em meio as suas atividades detetivescas, usa muito do que Morelli propôs para analisar obras de arte, como uma forma de solucionar crimes de aparência insolúvel. Da mesma forma que um mínimo detalhe de uma obra de Da Vince, Michelangelo ou Boticelli, entregava a sua autoria para Morelli, as pegadas ou cinzas de cigarro entregavam a autoria dos crimes para Holmes. O crítico da arte examina as obras de arte, o detetive as pistas de um crime. Em ambas os pequenos detalhes, quase imperceptíveis para um olho leigo tornam-se peça chave para a compreensão do todo.

Freud dialoga diretamente com o método moreliano, quando antes de sua análise da psicanálise. Se, para Morelli cada detalhe da obra revela uma característica particular do artista que a concebeu, para Freud cada mínima atitude involuntária revelam a sinuosidade profunda do inconsciente do seu paciente, trazendo à tona a raiz do problema psicológico, externando sua natureza inconsciente. Através destas minúcias reveladoras, Morelli mostra uma distinção do artista em meio ao seu processo cultural de criação, era uma forma de distinguir-se das escolas estéticas, uma forma de encontrar o Eu do artista naquela obra, Freud irá perceber, portanto, que as individualidades do método moreliano poderiam ser aplicáveis à psicanálise e na sua busca de desvendar o inconsciente humano através das atitudes despercebidas.

Ou seja, nos três casos, a se dizer, todos pertencentes aos saberes eruditos, os sinais, os símbolos, detalhes desprovidos de aparente importância, revelam a natureza complexa e profunda do problema. Para Morelli na forma de sinais imagéticos, para Freud eram os sintomas e na figura do Sr.Holmes os indícios, as pistas. A medicina, um saber tipicamente erudito, se constitui do paradigma indiciário, onde, o paciente no ato de procurar o médico, dizer-lhe quais os seus sintomas, o profissional da saúde através da observação dos sintomas, da analise do estado do paciente, de um estudo mais profundo dos seus exames, une o fio que revela os rastros, desvendando qual o problema de saúde do paciente.

O paradigma indiciário é galgado basicamente na experiência e na observação, é uma forma de conhecimento empírico, o empirismo é a unidade básica para que o homem em sua natureza possa conseguir conhecimento. Relaciono aqui o paradigma indiciário á leitura de Carl Sagan, quando discorrendo sobre o modo como existe uma forma de conhecimento empírico que é inerente ao ser humano, demonstra como os caçadores do povo !Kung San do deserto do Kalahari, já possuíam uma forma de ciência empírica, algo análogo ao paradigma indiciário. Sagan nos diz:  “Quase sempre leram corretamente a mensagem no solo. Os gnus, antílopes ou ocapis estão onde eles imaginaram, na quantidade e nas condições estimadas. A caçada é um sucesso.” (SAGAN, 2006, p.354). O paradigma indiciário é também um paradigma venatório, o homem através de toda sua história, frente a diversas situações adversas conseguiu aprender à ler os sinais deixados por exemplo, pela sua caça, e através de minuciosa  avaliação consegue interpretar e reconstituir o caminho feito pela sua presa, como nos afirma Ginzburg: “Se a realidade é opaca, existem zonas privilegiadas – sinais, indícios – que permitem decifra-la.”. É essa ideia que compõe essencialmente o método indiciário.

“As funções de correlação estão na cabeça dos caçadores” (SAGAN, 2006, p. 355) ou seja, o caçador, assim como o médico, ou o detetive, possui em sua vivência experimental os instrumentos cognoscitivos capazes de ler e interpretar tais sinais. Funcionam medindo as possibilidades, analisando alternativas, soluções possíveis. Ao longo de muitas gerações de homens e mulheres esse conhecimento é transmitido e aperfeiçoado através da observação. A oralidade foi importantíssima para manter viva a memória e as tradições populares. Tal qual fez Zadig, o sábio da Babilônia, usou da experiência e observação para deduzir segundo as pistas e sinais que encontrou como provavelmente seria a cadela perdida da rainha, sem se quer nunca tê-la visto, os caçadores liam e decifravam os rastros de suas presas e podiam inferir com alto grau de certeza para onde haviam ido, quantos eram, há quanto tempo, entre outros. Este paradigma já se encontrava no íntimo da natureza humana.

O paradigma indiciário é também um paradigma divinatório, calcado pela adivinhação com base na experiência, e não algo fora da realidade. Através de pequenos sinais, pode-se adivinhar com precisão algo de um passado de uma pessoa, como também quais prováveis atitudes aquela pessoa irá tomar, sem precisar recorrer á métodos sobrenaturais, apenas baseados na experiência e observação, bem como na leitura e interpretação dos sinais. Através da leitura e interpretação dos astros era possível inferir quando iria chover, por exemplo. O paradigma venatório e o divinatório voltam-se para dois opostos, o primeiro busca compreender e reconstituir o passado e o segundo busca decifrar o futuro.

Como saberes populares, se classifica tudo aquilo que não tem um cunho teórico, uma base científica para lhe dar sustentação, mas, encontra-se fortemente rico de aspectos deste novo paradigma emergido no século XIX. Os agricultores, pescadores, usam do método indiciário em seu cotidiano como forma de produzirem melhor, pois, é por meio da experiência que são capazes de interpretar os sinais e se, aquele solo é um bom solo para plantio, ou se “o mar não está pra peixe”.

Este é um paradigma semiótico, voltado para o estudo e análise dos sinais, das linguagens, uma ampliação da ciência dos signos. O paradigma indiciário consiste um importante progresso para a historiografia, torna-se um trunfo para o historiador. A história se vale desse paradigma para que, a partir da leitura de fontes, dos sinais e das minúcias, reconstruir o passado. O paradigma indiciário permite ao historiador especular, imaginar, como provavelmente se sucederam os acontecimentos e os fatos, com um alto grau de certeza partindo de uma leitura dos pormenores que eram antes ignorados, para agora revelar o contexto geral, revelar a profundidade do problema ao qual estavam incógnitos.

Referências:                                                                                                                       GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: Morfologia e história. (Tradução Federico Carotti) – São Paulo, Companhia das Letras, 1989.

SAGAN, Carl. O mundo assobrado por demônios: a ciência vista como uma vela no escuro. São Paulo. Companhia das Letras: 2006. (pp. 344-345).

A questão das Identidades em Stuart Hall

Stuart Hall

Stuart Hall

HALL, Stuart. A identidade em questão. In: ______. A Identidade cultural na pós-modernidade. 11ª Ed. – Rio de Janeiro: DP&A, 2006. (pp. 7-21).

Questionamentos a cerca da “identidade” vem sendo amplamente discutidos dentro das teorias sociais, Stuart Hall, logo na apresentação de seu livro demonstra o argumento para tal discussão, apontando que: “as velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo moderno, até aqui visto como um sujeito unificado.” (HALL, 2006, p. 7). Tais mudanças se devem a um processo de deslocamento das estruturas que estabilizaram o sujeito e o mundo social, o que tem sido chamado de descentramento.

O autor se posiciona de modo afirmativo quanto a proposição de que as identidades da modernidade estão sendo descentradas. Hall salienta que por se tratar de um fenômeno social não é possível oferecer conclusões seguras e definitivas a cerca do tema.                                                                                                       

Stuart Hall observa que as identidades modernas, tem se fragmentado, desde as “paisagens culturais” de classes, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade. Tudo aquilo que antes ofereciam as localizações solidificadas do individuo no corpo social tem entrado em crise, tem se deslocado das estruturas. Este deslocamento se dá tanto a um nível “de seu lugar social” quanto “de si mesmos”. Hall aponta que tais mudanças fazem parte de um processo mais abrangente que nos leva a indagação se não é a própria modernidade que está passando por uma transformação, neste ponto Hall reforça a afirmação de um mundo em que vivemos como pós-moderno, sendo “pós” alguma concepção de identidade fixa.    

Três concepções de identidade:

Há três diferentes concepções de identidade de sujeitos: o iluminista, o sociológico (ou moderno) e o pós-moderno. Hall desenvolve seu argumento a partir do sujeito iluminista, o qual se baseia em uma concepção de sujeito racional, que dotado de capacidades de ação e uma consciência plena de si e do mundo, revela um sujeito centrado e unificado, cuja identidade emergia com ele desde que nasce, desenvolvendo-se ao longo da vida; vale salientar que esse sujeito iluminista, como observa Hall, era descrito como masculino.            

O sujeito sociológico, é mais complexo, trata-se de uma interação entre “o núcleo interior” e nas relações com o mundo exterior (pessoas, valores, símbolos, culturas). Trata-se de uma concepção interacionista, e que se tornou a visão conceptual da sociologia clássica, cuja base teórica assevera que a identidade forma-se da interação que existe entre o “eu” e a sociedade. O eu interior e real que existe essencialmente dentro dos indivíduos que forma-se e modifica-se entre diálogos que se dão de modo continuado com o mundo cultural exterior. Dentro desse contexto o individuo projeta e é projetado na identidade cultural, que “preenche o espaço entre ‘interior’ e o ‘exterior’” (HALL, 2006, p. 11), sendo alinhado aos objetos e lugares do corpo sócio-cultural, essa identidade da modernidade irá costurar o individuo às estruturas de modo que “Estabiliza tanto os sujeitos quanto os mundos culturais que eles habitam, tornando ambos reciprocamente mais unificados e predizíveis.” (HALL, 2006, p.12).          

O argumento de que as identidades estão mudando, vem demonstrar que o sujeito antes “unificado e estável” passa a ser composto não de uma, mas várias identidades, “contraditórias e mal resolvidas”. Junto com essas mudanças de identidade, muda também o processo de identificação (o modo como o sujeito se projeta na cultura) com o mundo exterior que é cada vez mais problemático, variável. Eis o sujeito pós-moderno, cuja(s) identidade(s) se define:

historicamente, e não biologicamente. O sujeito assume em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um “eu” coerente. Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas. (HALL, 2006, p 13).

O caráter da mudança na modernidade tardia

Dialogando com alguns autores a cerca da modernidade, Hall demonstra um aspecto importante para compreendermos este processo de mudança nas identidades, relacionado ao momento que a sociedade vem passando com a “globalização”. Citando Marx, ele assevera o caráter de constantes e rápidas mudanças provocadas pela modernidade, cuja sociedade industrial está ligada aos processos de modernização, o surgimento de novas tecnologias que tornam as antigas obsoletas.                                                                                                     

Anthony Giddens ressalta que a conexão possibilitada pela globalização põe o mundo em conexão, de modo que ao serem interconectadas propagam ondas de transformação, alterando a natureza, o ritmo e o alcance das instituições modernas. Essas mudanças como salienta Giddens “tanto em extensão, quanto em intensidade, as transformações envolvidas na modernidade são mais profundas do que a maioria das mudanças características dos períodos anteriores […] elas alteraram algumas das características mais íntimas e pessoas de nossa existência cotidiana. (GIDDENS apud HALL, 2006). 

Citando David Harvey que fala na modernidade como “rompimento impiedoso de toda e qualquer condição precedente.” Hall traz Ernest Laclau para a discussão, demonstrando o deslocamento dos centros não por apenas um centro, mas por “uma pluralidade de centros de poder”. Estas sociedades são compostas por uma multiplicidade de poderes e forças, que não tem nem uma ordem, ou linearidade, de acordo com Laclau as sociedades da modernidade tardia se caracterizam pela ‘diferença’, e são essas diferenças que marcam os a variedade de identidades (leia-se sujeitos) e seus antagonismos sociais.

Como afirma Stuart Hall:

A sociedade não é, como os sociólogos pensaram muitas vezes, um todo unificado e bem delimitado, uma totalidade, produzindo-se através de mudanças evolucionárias a partir de si mesma, como o desenvolvimento de uma flor a partir de seu bulbo.

Essa identidade do sujeito pós-moderno abre um leque para inúmeras possibilidades, é uma concepção totalmente nova e diferente das demais. Novas identidades, novos sujeitos. Essa mudanças em todos os autores aqui abordados no estudo de Stuart Hall asseveram para o caráter da descontinuidade-ruptura e fragmentação, que são pontos chave para compreender a multiplicidade de identidades (leia-se sujeitos) e discursos no mundo pós-moderno. É importante (re) pensarmos essa questão, para compreender e aprender a respeitar as multiplicidades de identidade se sujeitos aos quais somos confrontados em nossa contemporaneidade. 

A importância do Mito

O Ovo Cósmico (Salvador Dalí)

O Ovo Cósmico (Salvador Dalí)

Gosta-se de acreditar que as coisas em seu início se encontravam em estado de perfeição; que elas saíram brilhantes da mão do criador. (Michel Foucault) 

O mito foi, pois, surgido da necessidade de responder ao inexplicável, dar nome as coisas inomináveis e rememorar tempos muito remotos que ultrapassam a memória dos viventes. Desde seus primórdios o mito teve em sua essência essa função: dar respostas às perguntas sobre o mundo e como as coisas funcionavam. A função atribuída ao mito é a de narrar de que forma tudo o que nos circunda foi criado. De que forma poderiam os homens conhecer sobre as origens do mundo, sem ter os meios e as ferramentas para isso, que não fosse por meio dos mitos? O mito é a primeira forma de ciência, pois se trata de especulações sobre a origem do mundo. (BIERLEIN, 2003). “o mito éa primeira tentativa tateante de explicar como as coisas acontecem, o ancestral da ciência. Também é a tentativa de explicar por que as coisas acontecem, a esfera da religião e da filosofia.” (BIERLEIN, 2003, p. 19).

Ora, porque então o Sol surge no horizonte e novamente no dia seguinte? Para nós, hoje, essa parece uma pergunta um tanto quanto simplista, no entanto, para nossos ancestrais há muitos séculos atrás essa era uma pergunta sem resposta, um mistério. Ora, a resposta para suas indagações culminava na seguinte resposta: isso se deve a ação dos deuses, os Entes Sobrenaturais. A visão que se tem hoje daquilo que é mito retrata-o como algo falso, uma mentira. “A palavra mito traz à mente mentiras, fábulas ou falácias que muitos tomam por verdades.” (BIERLEIN, 2003, p. 19). Além disso, “O mito, portanto, é ingrediente vital da civilização humana; longe de ser uma fabulação vã, ele é ao contrário, uma realidade viva” (ELIADE, 2007, p.23).

A construção do discurso à cerca do mito foi modificado ao longo do tempo, como o tempo foi alterada sua compreensão e sentido entre os gregos onde “o termo mythos passou a se limitar ao relato irreal e irracional, contrariamente ao logos que designava um discurso verdadeiro e racional.” (CADIOU; COULOMB et al., 2007, p.20).

A contemporaneidade construiu em torno de si, embasada pelo discurso científico, que as concepções para aquilo que é verdadeiro devem passar pelo crivo da ciência. A ciência tem o papel de validar. Algo só pode ser tido verdade se ele é “comprovado cientificamente”. Devemos observar que os homens primitivos desconheciam os moldes atuais de ciência, e desconheciam também das causas naturais para as coisas. 

Para além de uma explicação para o mundo, o mito constitui a forma como se estabeleceu o mundo, como se deu a ordem de todas as coisas, o mito justifica o porquê do mundo é o que é e não o é de outra forma. O mito estabelece o sagrado e o profano, o bem e o mal, a ordem social, a base econômica. O mito é aquilo que atribui um significado para a vida e a existência humana. J. F. Bierlein ainda acrescenta que “O mito dizia aos povos antigos quem eles eram e  qual era a maneira correta de viver.” (2003, p.18).

O mito conta uma história sagrada; ele relata o acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do ‘princípio’. Em outros termos, o mito narra como, graças às façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja uma realidade total, o Cosmo, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição. É sempre, portanto, a narrativa de uma ‘criação’: ele relata de que modo algo foi produzido e começou a ser. (ELIADE, 2007, p. 11).

Assim como todos os povos antigos, os nórdicos também estabeleceram seus mitos, ritos, lendas, e que, com o passar dos anos e da desmistificação nos são conhecidos como mitologia. Os nórdicos criaram mitos para explicar de que modo o mundo surgiu ‘uma realidade total’, ou o motivo pelo qual os salmões tem a cauda fina, ou seja, para explicar um ‘fragmento’ da realidade. O mito será, portanto, uma maneira pela qual os povos antigos encontraram de transmitir através da oralidade e dos rituais, as dimensões de ver e sentir a realidade, atribuindo-lhe significado. Os deuses e os Entes Sobrenaturais, além de tudo isso, ainda irão servir como exemplo de moralidade, de bondade, um exemplo de conduta para o ser humano em suas condições.

Graças a transmissão oral passada de geração à geração pelos povos nórdicos, é que no século XIII, cerca de trazendo anos após a cristianização da Islândia, o poeta e historiador Snorri Sturlusson conseguiu captar e registrar os principais mitos e lendas que fazem referência e alusão aos deuses e heróis da religião dos povos nórdicos. Ele os registrou em seu livro Edda em Prosa.

Os escaldos do norueguês skald eram os membros que compunham um seleto grupo de poetas das cortes dos líderes escandinavos e islandeses, que através de seus poemas difundiram oralmente as lendas antigas. A escrita rúnica apresentava aspectos sagrados e por este motivo não era utilizada para fixar os poemas míticos. “o livro de Snorri como fonte primária, sua estrutura é a de uma fonte secundária [um texto altamente elaborado sobre a mitologia nórdica, baseado em fontes primárias, muitas das quais perdidas para nós].” (CARDOSO In: CANDIDO, 2007, p.7). “Os escaldos eram os bardos e poetas da nação, uma classe muito importante em todas as comunidades ainda no estágio primitivo de civilização. Eram os depositários de muitas narrativas históricas” (BULFINCH, 2006, p. 230-231), e como todos os poetas antigos, são importantes protetores do aspecto da tradição oral de seus povos, pois, mantém viva a memória de seus antepassados. Sua função era rememorar.

A oralidade foi fundamental para manter vivos os mitos até que estes fossem fixados na forma escrita. Aqui entra a importância da transmissão oral para manter vivo o mito, de forma pela qual faziam os escaldos, como aponta Eliade “Ao recitar os mitos, reintegra-se àquele tempo fabuloso e a pessoa torna-se conseqüentemente(sic), ‘contemporânea’, de certo modo, dos eventos evocados, compartilha da presença dos Deuses ou dos Heróis.”(2007, p.21). Recontar o mito é revivê-lo.

Dentro desde contexto as narrativas das lendas têm um papel muito importante. Porque a lenda sistematiza e ordena realidades, no ato de sua transmissão oral, envolve tanto o narrador como os ouvintes vivem num tempo e num espaço a reintegração dos acontecimentos da história. (OLIVEIRA; LIMA, 2006, p. 5).

Dessa forma conclui-se que o mito constitui-se como aspecto importante, não só para a formação identitária de um povo, mas para sua compreensão em torno de si mesmo e do mundo que o circunda. A partir dos mitos podemos analisar as visões de mundo dos nossos antepassados e de que forma encaravam a realidade.Dessa forma conclui-se que o mito constitui-se como aspecto importante, não só para a formação identitária de um povo, mas para sua compreensão em torno de si mesmo e do mundo que o circunda. A partir dos mitos podemos analisar as visões de mundo dos nossos antepassados e de que forma encaravam a realidade.

REFERÊNCIAS:

BULFINCH, Thomas. O livro de ouro da mitologia: história de deuses e heróis; tradução David Jardim. – Rio de Janeiro: Ediouro, 2006.

BIERLEIN, J. F. Mitos paralelos; tradução de Pedro Ribeiro. – Rio de Janeiro, Ediouro, 2003.

CADIOU, François; COULOMB, Clarisse et al. Como se faz a história: Historiografia, método e pesquisa; tradução de Giselle Unti. – Petropólis: Vozes, 2007.

CARDOSO, Ciro Flamarion. Aspectos da cosmogonia e da cosmografia escandinava. DIAS, Alan Ney. Ragnarok: o crepúsculo dos deuses In: CANDIDO, Maria Regina (Org.). Mitologia Germano-escandinava: do chaos ao apocalipse. Rio de Janeiro: NEA/UERJ, 2007.

ELIADE, Mircea. Mito e realidade; tradução de Pola Civelli. – São Paulo: Perspectiva, 2007.

OLIVEIRA, S. M. ; LIMA, A. S. .O Mito na formação da identidade. Dialógica (Manaus), Manaus, 31 jul. 2006.

A invenção do cotidiano de Certeau

Michel de Certeau

Michel de Certeau

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. as artes de fazer; 16ª Ed. Tradução de Ephraim Ferreira Alves. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2009. (pp. 35-55); (pp. 86-100).

Em sua obra A invenção do cotidiano no volume um “Artes de fazer”, Michel de Certeau trata a cerca de uma densa e complexa pesquisa sobre o cotidiano das sociedades ditas “submissas”, compostas de consumidores passivos. Nascida de um questionamento, essa pesquisa visa encabeçar o modo como os usuários do sistema operam no seu dia-a-dia, de que forma a multidão de passantes recebe, absorve e utiliza os produtos gerados por uma parcela “produtora”, considerada “dominante”, demonstrando suas práticas e representações.

Desfocando da dicotomia entre erudito e popular, conceitos que são destituídos, a pesquisa volta-se para as operações efetuadas pelos usuários dos produtos da cultura de massas que lhes são oferecidos no mercado. O que fazem com eles? Como consomem? São algumas dessas perguntas que norteiam o interesse de Michel de Certeau em sua pesquisa.

Os rumos tomados no trabalho de Certeau tem possibilitado novos caminhos à serem trilhados pelos historiadores das culturas, desperta o estudo sobre as massas como sujeitos de história e produtores da mesma, não apenas como meros reprodutores dos discursos, mas como agentes que reinterpretam esses discursos e deles fazem usufruto no seu cotidiano. Novos rumos se tornam possíveis porque Certeau desperta “seu interesse pelos ‘sujeitos’ produtores e receptores de cultura” (BARROS, 2011, p.41).

Os sujeitos que sua pesquisa irá estudar são aqueles que ocupam um lugar ordinário, possuidores de práticas “comuns”, Certeau não escolhe um ator, não dá rosto à sua pesquisa, muito pelo contrário, ele busca as massas, querendo destituir o “atomismo social” e por meio de sua analise das multidões “Introduzi-las em experiências particulares” (CERTEAU, 2009, p. 35). Debruçar-se sobre as artes de fazer, caminhar, ler, habitar, cozinhar, em suma as ações cotidianas realizadas por muitos indivíduos que compõem a multidão sem rosto à qual Certeau se refere em sua pesquisa, remete ao que todo e qualquer indivíduo deve realizar todos os dias, haja vista que as relações entre os indivíduos são sempre sociais e por estas determinadas, em que o individuo “é o lugar onde atua uma pluralidade (e muitas vezes contraditória) de suas determinações relacionais.” (CERTEAU, 2009, p. 37).

Certeau quer saber o que os sujeitos “fabricam” com os produtos que recebem, compram, enfim “consomem”. De acordo com Certeau este homem ordinário ao receber as informações veiculadas na televisão, os relatos dos jornais ou produtos que compra no supermercado está exercendo outra produção, que é classificada como ‘consumo’. Esta forma de produção é ‘silenciosa’, ‘astuciosa’ e ‘quase invisível’, acontece nas miudezas do dia-a-dia, não se percebe o emprego e as apropriações que são impostos por um discurso econômico de caráter dominante, o sujeito que consome exerce uma prática que “é capaz de subverter e jogar com as imposições, jamais sendo redutíveis a elas” (OHARA, 2012, p. 453).

A presença e a circulação de uma representação (ensinada como o código da promoção socioeconômica por pregadores, por educadores ou por vulgarizadores) não indicam de modo algum o que ela é para seus usuários. É ainda necessário analisar sua manipulação pelos praticantes que não a fabricam. (CERTEAU, 2009, p. 39).

O usuário subverte esta ordem, não necessariamente modificando-a, ou mesmo rejeitando-a, mas usando-as para outras finalidades que não aquelas instituídas pelo sistema, do qual não podem fugir, portanto burlam o sistema, aproveitando-se das brechas da lei. O usuário realiza uma ‘bricolagem’ desta “economia cultural dominante” de acordo com seus interesses e necessidades, ou seja, o usuário personaliza o sistema de modo que lhe melhor aprouver.

O retrato dessa subversão dos usuários é o passeur, do francês “passante”, um passeur “desafia as fronteiras e limites estabelecidos”, sua função é atravessar coisas e pessoas, o passeur é um contrabandista, um atravessador. O passeur está na contramão da ordem estabelecida em que ele, como representante usuário com suas astúcias de acordo com Ohara, se apresenta “frente às imposições objetivas colocadas em seu caminho, ele cria atalhos, desloca certezas e subverte o status quo.” (OHARA, 2012, p. 454).

E é justamente a multidão de passantes, sem rosto, que Certeau irá se debruçar para compreender as relações de poderes, que como também observou Foucault são microfísicas, capilares. No entanto, Certeau as compreende como produtoras não de dominações, nem de repressões totais e absolutas, são relações multidimensionais e complexas, cujo foco de Michel de Certeau incidirá nas práticas de subversão dos instrumentos de poder, onde Foucault analisa como vigilantes e normalizadores. Deste modo essas práticas se constituem como uma “antidisciplina”.

A multidão de passante irá se valer como nos diz Certeau, de táticas para burlar as estratégias do sistema produtor, de ordem “dominante”. De acordo com José D’Assunção Barros: “As ‘táticas inventadas pelo individuo comum confrontam-se, dessa maneira, com as ‘estratégias’ veiculadas pela indústria cultural e pelos grandes sistemas de manipulação e dominação do mercado consumidor.” (2011, p. 42). De que forma? “As táticas do consumo, engenhosidades do fraco para tirar partido do forte” (CERTEAU, p. 44, 2009), atuam em oposição às estratégias de poder e dominação, a “estratégia” nos termos do próprio Certeau são cálculos de relações de força, estabelecendo um lugar que servirá de base para gerir as relações de quem o elabora com sua exterioridade. Um general antes da guerra planeja uma estratégia em sua mente, para que seus soldados durante a batalha façam exatamente o que ele especula, um técnico de futebol faz o mesmo com o seu time, podemos dizer que se tratam de relações previsíveis, coisas que são previstas de acontecer. A disciplina é uma estratégia. O poder é uma estratégia.

Em sua contrapartida atua a tática ela não pode se dispor de uma base, ela é improviso; A tática é dependente do tempo e das circunstancias, enfim, a tática joga com ocasiões, com o imprevisível, é oportunidade. O fraco, o pobre, o “dominado” joga com as táticas, para tirar proveito do forte, rico, “dominante”. Exemplos disso temos o arqueiro-saqueador Robin Hood, que na floresta de Sheerwood escondia os espólios dos saques que fazia aos poderosos para distribuir com os mais fracos; João Grilo, personagem central do Auto da Comparecida do saudoso Ariano Suassuna, usa de suas táticas, como a mentira, para ludribiar atuando nas ocasiões e oportunidades para se dar bem frente aos poderosos, mas tais táticas podem nos ser ainda mais próximas, é o que fazemos todos os dias; As práticas cotidianas como tanto assevera Certeau são táticas, são as “maneiras de fazer” que o consumidor tem para com o produtor, pequenas astúcias do dia-a-dia, glórias do cotidiano que tem o homem ordinário. Constituem-se saberes milenares, utilizados pelos animais que se camuflam para vencer o seu caçador, portanto, o cotidiano e sua invenção, bem como sua reinvenção, não são simples reproduções e apropriações impostas hierarquicamente, ela sofre mudanças, sofre alteração, reapropriação são as “mil maneiras de caça não autorizada” criadas pelo usuário todos os dias para subverter e sobreviver ao sistema.

Outras fontes:

BARROS, José D’Assunção. A Nova História Cultural: considerações sobre o seu universo conceitual e seus diálogos com outros campos históricos. Cadernos de História. – v. 12, n. 16, 1º sem. Belo Horizonte, 2011. (pp. 41 – 42).

OHARA, João Rodolfo Munhoz. O historiador como passeur: considerações sobre Michel de Certeau e o ofício do historiador. Cad. Pesq. Cdhis, Uberlândia, v.25, n.2, jul./dez. 2012. (pp. 253 – 255).

Michel Foucault e a Genealogia

Michel Foucault

Michel Foucault

O método genealógico de Foucault trata-se de uma inovação possibilitada pelas contribuições do pós-estruturalismo. A genealogia inspirada em Nietzsche busca a escrita de uma história que recusa a perfeição das origens, reconhecendo os acontecimentos como tramas de discursos, que se cruzam e entrecruzam em movimentos e forças constantes, circulares, elípticos, helicoidais, que formam e transformam um contexto. “A genealogia não se opõe à história […]; ela se opõe, ao contrário, ao desdobramento meta-histórico das significações ideais e das indefinidas teleologias. Ela se opõe à pesquisa das origens” (FOUCAULT, 2010, p. 16).

Como vem a apontar Foucault em Nietzsche, a Genealogia e a História o homem gosta de pensar as coisas como “saindo brilhantes das mãos do criador”, uma visão de fatos concretos, datáveis, estáticos e fixos, que estabelecem padrões e uma fácil verificação. Isso se deve à tradição cultural ocidental de viés platônico-cristão de buscar sempre a verdade, que está impregnado e naturalizado no cotidiano, no discurso religioso, científico, jurídico, etc.  (Cf. JENKINS, 2001, p. 54-55).

Em sua Genealogia, Foucault vem romper com tal perspectiva, não existem tais origens. Foucault trabalha com gênese, nascimento, formação, construção, jogo, rupturas, continuidades. Todos esses usos remetendo ao processo histórico como algo em constante formulação e reformulação, jamais acabado. Demonstrando a História como fruto das constantes lutas dos discursos e suas relações de saber-poder ao longo do tempo. Como aponta Durval Muniz “os objetos e sujeitos históricos são feitos de múltiplos gomos, das costuras […], de diferentes temas, enunciados, conceitos, conteúdos, formas” (ALBUQUERQUE JR., 2007, p. 168).

Os sujeitos e os objetos, e a própria História, são formados em uma vasta gama de discursos, cada um com seus interesses particulares, em uma rede de emaranhados, tessituras, um constante cabo de força de relações de poder. Cada um com sua gênese historicamente construída e particular.

Os leitores e estudiosos de Michel Foucault colocam-no em três “fases” de pesquisa, cada uma complementando seu projeto de estudos. A Genealogia é considerada sua segunda “fase”, inaugurada na década de 1970, na qual ele busca compreender a formação dos discursos e das relações de poder ao longo do tempo, dividindo historicamente a sociedade ocidental em três epistemes: renascentista, clássica e moderna.

A genealogia vem complementar a arqueologia, ampliando e aprofundando sua pesquisa, nesta fase Foucault pergunta-se “não só o que forma os saberes, as epistemes, como também qual é a sua gênese, como eles se formam.” (CARDOSO JR., 2006, p. 146). Em cada episteme que Foucault analisa as relações de poder irão constituir a prática dos discursos. Deste modo tais relações irão produzir saberes, aqui as relações de poder constituem-se como estratégias que visam legitimar um discurso, portanto, legitimar um saber. Por exemplo, a oposição entre Fé e Razão, na qual a burguesia desenvolve estratégias de poder para legitimar a Razão ao invés da Fé, substituindo-a como o Espírito Universal que guia e dá sentido à História.

O método genealógico analisa os acontecimentos não em sua origem, mas no “passou a ser”, no “tornou-se”. Ele busca “reencontrar as diferentes cenas onde eles desempenharam papéis distintos” (FOUCAULT, 2006, p. 15). Valendo-se da arqueologia assinala as lacunas onde os discursos vigentes deixaram de ser, marcando assim as rupturas, dando vez à um novo discurso. Vale salientar que todos os discursos e relações de poder que constituem os saberes não devem ser compreendidos como “posteriores ou superiores”, mas ser “considerado como possuindo posivitidade específica” (MACHADO, 2006, VII). Desta forma cada saber produz seus avanços, que devem ser analisados em seu contexto específico e jamais comparados como mais ou menos evoluído.

Objetivando agora compreender como os saberes eram produzidos pelas estratégias de poder, Foucault assinala o seu método genealógico em duas obras principais, Vigiar e Punir (1975) e o volume um da História da Sexualidade: A vontade de Saber (1976).

O poder não é homogêneo, ele é um prática, e como uma prática, ele é historicamente constituído. O poder atrelado ao Estado é, pois, “uma articulação com poderes, locais, específicos, circunscritos” (MACHADO, 2006, XI). O exercício do poder se dá de diferentes e variados modos.

Compreender o conceito de poder em Foucault se faz necessário para a compreensão do método da genealogia, o poder não se trata de algo que é possível concentrar nas mãos de um individuo, ou numa única instituição, encontra-se disseminado em focos, de forma a estabelecer relações microfísicas. O poder é “uma questão de exercício, não de posse.” (CARDOSO JR, 2006, p. 148). Consiste em práticas de poder, que desta forma trata-se de uma força que se exerce obedecendo a interesses estratégicos, visando legitimar uma realidade (leia-se discurso).

Em Vigiar e Punir, Foucault demonstra como ao longo do tempo se exercem diferentes práticas de poder, e que a culminância de todo o mecanismo de poder incide sobre o corpo, tendo como foco principal os instrumentos punitivos. Na episteme do Renascimento, as punições eram feitas na materialidade do corpo do acusado. É a época dos grandes espetáculos de tortura, os suplícios, que através da dita materialidade expressava o poder do Rei, lesado pelo ato ilegal e que por isso deveria punir o corpo do índividuo.

Foucault analisa que a partir dos séculos XVII e XVIII emerge um novo discurso, de “Humanização das penas”, onde se alteram as estratégias de poder e visa-se agora “classificar as penas e os crimes”, estabelecendo uma ligação de justiça entre crime e punição visando reeducar e ressocializar o criminoso, para corrigir a sua moral. As penitenciárias, e o sistema carcerário como um todo, tem um papel preponderante nas estratégias de poder, assim como em outras instituições como o hospital, a clínica, a escola, o exército. É a representação da sociedade disciplinar que visa a docilização dos corpos, o ponto máximo da culminância do poder, de onde vem e para onde parte todo o sistema. O corpo, que será alvo de “controle social”, em que “O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe.” (FOUCAULT, 2013, p. 133).

Desta forma a sociedade disciplinar encontra-se num diagrama de controle e de vigilânia constante, assinalado com o panoptismo, que expõe agora o corpo a “máxima visibilidade” (CARDOSO JR., 2006, p.152), tornando o individuo, controlável em todos os seus aspectos, o que leva a uma vigilância constante de si.

Concebido desta forma, o método genealógico é uma negação das origens, é uma ida ao caos das fontes e das diferentes épocas e contextos históricos como propunha Nietzsche, pois, não existe a perfeição das origens, e nem a história é uma história de quedas e decadência, ou de um eterno devir que marcha para numa linearidade evolutiva das metanarrativas. Como disse O’brien “Foucault reformulou a compreensão histórica muito mais através da prática que da teoria” (2001, p.68), ou seja, através da sua prática de pesquisa Foucault possibilitou uma grande abertura no campo da historiografia, permitindo novas abordagens da história, possibilitando-a repensar-se, através de novos métodos e possibilidades, dando voz aos excluídos (o louco, o presidiário, o parricida). Foucault tirou os acontecimentos do campo do factual, eles tem uma formação anterior, demonstrando que tudo na história tem um interesse, e que nada acontece inocentemente, são construções, maquinações e estratégias de poder em constante luta.

* Este pequeno ensaio foi utilizado na atividade avaliativa da disciplina de Teoria da História III do semestre 2014.2.

REFERÊNCIAS:

ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A História em jogo: a atuação de Michel Foucault no campo da historiografia. IN:__________. História: A arte de inventar o passadoEnsaios de teoria da história. – Bauru, SP: EDUSC, 2007. 256 p.

CARDOSO JÚNIOR, Hélio Roberto. Foucault em vôo rasante. In: CARVALHO, Alonso Bezerra de. SILVA, Wilson Carlos Lima da. (orgs.). Sociologia e Educação: leituras e interpretações. São Paulo: Editora Avercamp, 2006.

FOUCAULT, Michel. Nietzsche, a Genealogia e a História. In: ________. Microfísica do poder. 22ª Ed. Rio de Janeiro: Graal, 2006.

___________  . Vigiar e punir: nascimento da prisão. (tradução de Raquel Ramalhete.) 41ª Ed. Petrópolis: Vozes, 2013. 291 p.

JENKINS, Keith. Algumas perguntas e algumas respostas. In: _______. A História repensada; Trad: Mário Vilela – São Paulo: Contexto, 2001. 120 p.

MACHADO, Roberto. Por uma genealogia do poder. In: FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 2010.

O’BRIEN, Patricia. A história da cultura de Michel Foucault. In: HUNT, Lynn. A nova história cultural. – Trad. Jefferson Luiz Camargo. 2ª Ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2001. 317 p.

Clio: a Musa da História

Clio, filha de Zeus e Mnémosine (leia-se memória), é uma das nove musas que representam as Artes e as Ciências na mitologia grega. Seu atributo é a História, ela é a responsável por celebrar e divulgar as realizações.

É representada como uma jovem, que por sobre a cabeça repousa uma coroa de louros, está sempre acompanhada por livros, e geralmente em sua mão tem um instrumento de sopro, no caso desta obra de 1689 do pintor francês Pierre Mignard, ela segura uma trompa. Por meio de tal instrumento ela divulga as realizações dos tempos antigos e os reconstitui para o tempo presente. Ao seu lado ela tem o tempo.

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Clio por Pierre Mignard (1689)

É pois, Clio a Musa da História, símbolo desta arte e dos historiadores, que representa este nosso ofício. Clio, a História, Esta nossa doce arte  de fazer que gera milhares de amantes que canta e encanta aos sentidos.

A esta misteriosa arte que estamos ainda por desvendar dedico este blog, que objetiva discutir temas pertinentes e concernentes a História e a historiografia. Ao longo de minhas  leituras por toda a graduação pretendo desenvolver resenhas para aprimorar a prática da escrita, bem como através das postagens neste blog ajudar aqueles que, como eu,  amantes da História se interessem por ler e aprender mais.

Referências:

http://cpantiguidade.wordpress.com/2011/03/14/“clio”-–-a-musa-grega-da-historia/