Michel Foucault e a Genealogia

Michel Foucault

Michel Foucault

O método genealógico de Foucault trata-se de uma inovação possibilitada pelas contribuições do pós-estruturalismo. A genealogia inspirada em Nietzsche busca a escrita de uma história que recusa a perfeição das origens, reconhecendo os acontecimentos como tramas de discursos, que se cruzam e entrecruzam em movimentos e forças constantes, circulares, elípticos, helicoidais, que formam e transformam um contexto. “A genealogia não se opõe à história […]; ela se opõe, ao contrário, ao desdobramento meta-histórico das significações ideais e das indefinidas teleologias. Ela se opõe à pesquisa das origens” (FOUCAULT, 2010, p. 16).

Como vem a apontar Foucault em Nietzsche, a Genealogia e a História o homem gosta de pensar as coisas como “saindo brilhantes das mãos do criador”, uma visão de fatos concretos, datáveis, estáticos e fixos, que estabelecem padrões e uma fácil verificação. Isso se deve à tradição cultural ocidental de viés platônico-cristão de buscar sempre a verdade, que está impregnado e naturalizado no cotidiano, no discurso religioso, científico, jurídico, etc.  (Cf. JENKINS, 2001, p. 54-55).

Em sua Genealogia, Foucault vem romper com tal perspectiva, não existem tais origens. Foucault trabalha com gênese, nascimento, formação, construção, jogo, rupturas, continuidades. Todos esses usos remetendo ao processo histórico como algo em constante formulação e reformulação, jamais acabado. Demonstrando a História como fruto das constantes lutas dos discursos e suas relações de saber-poder ao longo do tempo. Como aponta Durval Muniz “os objetos e sujeitos históricos são feitos de múltiplos gomos, das costuras […], de diferentes temas, enunciados, conceitos, conteúdos, formas” (ALBUQUERQUE JR., 2007, p. 168).

Os sujeitos e os objetos, e a própria História, são formados em uma vasta gama de discursos, cada um com seus interesses particulares, em uma rede de emaranhados, tessituras, um constante cabo de força de relações de poder. Cada um com sua gênese historicamente construída e particular.

Os leitores e estudiosos de Michel Foucault colocam-no em três “fases” de pesquisa, cada uma complementando seu projeto de estudos. A Genealogia é considerada sua segunda “fase”, inaugurada na década de 1970, na qual ele busca compreender a formação dos discursos e das relações de poder ao longo do tempo, dividindo historicamente a sociedade ocidental em três epistemes: renascentista, clássica e moderna.

A genealogia vem complementar a arqueologia, ampliando e aprofundando sua pesquisa, nesta fase Foucault pergunta-se “não só o que forma os saberes, as epistemes, como também qual é a sua gênese, como eles se formam.” (CARDOSO JR., 2006, p. 146). Em cada episteme que Foucault analisa as relações de poder irão constituir a prática dos discursos. Deste modo tais relações irão produzir saberes, aqui as relações de poder constituem-se como estratégias que visam legitimar um discurso, portanto, legitimar um saber. Por exemplo, a oposição entre Fé e Razão, na qual a burguesia desenvolve estratégias de poder para legitimar a Razão ao invés da Fé, substituindo-a como o Espírito Universal que guia e dá sentido à História.

O método genealógico analisa os acontecimentos não em sua origem, mas no “passou a ser”, no “tornou-se”. Ele busca “reencontrar as diferentes cenas onde eles desempenharam papéis distintos” (FOUCAULT, 2006, p. 15). Valendo-se da arqueologia assinala as lacunas onde os discursos vigentes deixaram de ser, marcando assim as rupturas, dando vez à um novo discurso. Vale salientar que todos os discursos e relações de poder que constituem os saberes não devem ser compreendidos como “posteriores ou superiores”, mas ser “considerado como possuindo posivitidade específica” (MACHADO, 2006, VII). Desta forma cada saber produz seus avanços, que devem ser analisados em seu contexto específico e jamais comparados como mais ou menos evoluído.

Objetivando agora compreender como os saberes eram produzidos pelas estratégias de poder, Foucault assinala o seu método genealógico em duas obras principais, Vigiar e Punir (1975) e o volume um da História da Sexualidade: A vontade de Saber (1976).

O poder não é homogêneo, ele é um prática, e como uma prática, ele é historicamente constituído. O poder atrelado ao Estado é, pois, “uma articulação com poderes, locais, específicos, circunscritos” (MACHADO, 2006, XI). O exercício do poder se dá de diferentes e variados modos.

Compreender o conceito de poder em Foucault se faz necessário para a compreensão do método da genealogia, o poder não se trata de algo que é possível concentrar nas mãos de um individuo, ou numa única instituição, encontra-se disseminado em focos, de forma a estabelecer relações microfísicas. O poder é “uma questão de exercício, não de posse.” (CARDOSO JR, 2006, p. 148). Consiste em práticas de poder, que desta forma trata-se de uma força que se exerce obedecendo a interesses estratégicos, visando legitimar uma realidade (leia-se discurso).

Em Vigiar e Punir, Foucault demonstra como ao longo do tempo se exercem diferentes práticas de poder, e que a culminância de todo o mecanismo de poder incide sobre o corpo, tendo como foco principal os instrumentos punitivos. Na episteme do Renascimento, as punições eram feitas na materialidade do corpo do acusado. É a época dos grandes espetáculos de tortura, os suplícios, que através da dita materialidade expressava o poder do Rei, lesado pelo ato ilegal e que por isso deveria punir o corpo do índividuo.

Foucault analisa que a partir dos séculos XVII e XVIII emerge um novo discurso, de “Humanização das penas”, onde se alteram as estratégias de poder e visa-se agora “classificar as penas e os crimes”, estabelecendo uma ligação de justiça entre crime e punição visando reeducar e ressocializar o criminoso, para corrigir a sua moral. As penitenciárias, e o sistema carcerário como um todo, tem um papel preponderante nas estratégias de poder, assim como em outras instituições como o hospital, a clínica, a escola, o exército. É a representação da sociedade disciplinar que visa a docilização dos corpos, o ponto máximo da culminância do poder, de onde vem e para onde parte todo o sistema. O corpo, que será alvo de “controle social”, em que “O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe.” (FOUCAULT, 2013, p. 133).

Desta forma a sociedade disciplinar encontra-se num diagrama de controle e de vigilânia constante, assinalado com o panoptismo, que expõe agora o corpo a “máxima visibilidade” (CARDOSO JR., 2006, p.152), tornando o individuo, controlável em todos os seus aspectos, o que leva a uma vigilância constante de si.

Concebido desta forma, o método genealógico é uma negação das origens, é uma ida ao caos das fontes e das diferentes épocas e contextos históricos como propunha Nietzsche, pois, não existe a perfeição das origens, e nem a história é uma história de quedas e decadência, ou de um eterno devir que marcha para numa linearidade evolutiva das metanarrativas. Como disse O’brien “Foucault reformulou a compreensão histórica muito mais através da prática que da teoria” (2001, p.68), ou seja, através da sua prática de pesquisa Foucault possibilitou uma grande abertura no campo da historiografia, permitindo novas abordagens da história, possibilitando-a repensar-se, através de novos métodos e possibilidades, dando voz aos excluídos (o louco, o presidiário, o parricida). Foucault tirou os acontecimentos do campo do factual, eles tem uma formação anterior, demonstrando que tudo na história tem um interesse, e que nada acontece inocentemente, são construções, maquinações e estratégias de poder em constante luta.

* Este pequeno ensaio foi utilizado na atividade avaliativa da disciplina de Teoria da História III do semestre 2014.2.

REFERÊNCIAS:

ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A História em jogo: a atuação de Michel Foucault no campo da historiografia. IN:__________. História: A arte de inventar o passadoEnsaios de teoria da história. – Bauru, SP: EDUSC, 2007. 256 p.

CARDOSO JÚNIOR, Hélio Roberto. Foucault em vôo rasante. In: CARVALHO, Alonso Bezerra de. SILVA, Wilson Carlos Lima da. (orgs.). Sociologia e Educação: leituras e interpretações. São Paulo: Editora Avercamp, 2006.

FOUCAULT, Michel. Nietzsche, a Genealogia e a História. In: ________. Microfísica do poder. 22ª Ed. Rio de Janeiro: Graal, 2006.

___________  . Vigiar e punir: nascimento da prisão. (tradução de Raquel Ramalhete.) 41ª Ed. Petrópolis: Vozes, 2013. 291 p.

JENKINS, Keith. Algumas perguntas e algumas respostas. In: _______. A História repensada; Trad: Mário Vilela – São Paulo: Contexto, 2001. 120 p.

MACHADO, Roberto. Por uma genealogia do poder. In: FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 2010.

O’BRIEN, Patricia. A história da cultura de Michel Foucault. In: HUNT, Lynn. A nova história cultural. – Trad. Jefferson Luiz Camargo. 2ª Ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2001. 317 p.

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